Thich Quang Duc: o monge que botou fogo em si mesmo

16/10/2020 às 15:304 min de leitura

Ao longo dos séculos, a autoimolação foi traduzida como uma forma de sacrificar o próprio corpo atirando fogo em si mesmo. Essa concepção foi naturalizada na cultura em meados de 1817 através de um dos romances da autora Sydney Owenson, mais conhecida como Lady Morgan.

A prática tem raízes na cultura do budismo e do hinduísmo, consistindo em sacrificar o corpo através de qualquer método, seja por fogo, enforcamento ou se atirando a algum animal selvagem. A autoimolação é feita em prol de uma causa que pode ser de cunho moral, político ou religioso.

(Fonte: BAOMOI/Reprodução)
(Fonte: BAOMOI/Reprodução)

Segundo o sociólogo Michael Biggs da Universidade de Oxford, aqueles que cometem a autoimolação de cunho religiosa acreditam ter atingido um estágio de perfeição, sendo a renúncia do corpo à última etapa para transcendência de suas limitações. O ato moral é quando alguém é insultado, como aconteceu com Sati, uma das esposas do deus Shiva na mitologia hinduísta, que ateou fogo em si mesma após ser humilhada pelo próprio pai após a morte de seu marido. Por outro lado, o ato político da autoimolação envolve uma campanha de protesto contra o sistema.

Enquanto os cristãos associam o fogo aos horrores do inferno, e os católicos consideram morrer queimado um ato repugnante, o hinduísmo enxerga o fogo como um meio purificador de se livrar de um corpo.

A repressão da fé

Ngo Dinh Diem. (Fonte: Britannica/Reprodução)
Ngo Dinh Diem. (Fonte: Britannica/Reprodução)

Nascido em uma família sob forte influência do catolicismo após missionários portugueses converterem à força seus ancestrais no século XVII, o então presidente do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, cresceu com o pensamento de que o país deveria ser descaracterizado culturalmente e que todas as religiões que não fossem católicas deveriam ser reprimidas.

Desde sua ascensão ao governo, em 1955, Diem foi tomando medidas discriminatórias que só causaram revolta nos budistas, que consistia 90% da população. Ele isentou os católicos de prestar uma espécie de serviço de corveia que o governo obrigava a todos a realizar, deixando apenas para que os cidadãos abertamente declarados budistas cumprissem. Diem passou a beneficiar com verba pública as aldeias católicas e deixar as demais à míngua.

A promulgação de políticas desonestas contra os budistas não pararam por aí. Além de desvantagens nas atribuições de terras, impostos e serviços públicos, o novo governo vietnamita fez os oficiais do Exército da República do Vietnã (ARVN) se converterem ao catolicismo sob a premissa de que o futuro de suas carreiras dependiam dessa mudança. Os que se recusaram a fazer isso sofreram punições, perderam os cargos e até foram exonerados.

(Fonte: NamViet News/Reprodução)
(Fonte: NamViet News/Reprodução)

Diem se encarregou de fornecer armamento pesado às milícias das aldeias católicas com o objetivo de coibir qualquer prática budista. A maioria dos padres católicos dirigiam exércitos particulares fortemente armados, que usaram de força bruta e ameaça de morte para realizar conversões de habitantes locais. Eles também foram os responsáveis por saques, bombardeios e demolições de templos budistas. Muitos religiosos acabaram abdicando da própria religião em troca de poder com o intuito de receber ajuda do governo para poder sobreviver e também para não serem espancados ou terem as moradias destruídas pelas tropas católicas.

No início de janeiro de 1956, Diem tornou lei a Ordem 46, a qual declarava que qualquer indivíduo considerado perigoso para a defesa nacional e segurança comum seria confinado em um campo de concentração por tempo indeterminado. Essa lei foi usada exclusivamente contra os budistas.

A última bandeira

(Fonte: Broken Map/Reprodução)
(Fonte: Broken Map/Reprodução)

Há mil anos, a cidade de Hue, localizada na região central do Vietnã, foi considerada o seio religioso do país, portanto foi lá que a maior revolução da história aconteceu. No dia 7 de maio de 1963, quando é celebrado o nascimento do Buda no país, o presidente Diem proibiu que qualquer bandeira budista fosse hasteada por todo o Vietnã.

Ultrajados, no dia seguinte, cerca de 10 mil manifestantes marcharam da pagoda de Tu Dam até a região central de Hue para protestar pacificamente. Apesar disso, as tropas do governo atiraram e mataram 9 pessoas. Diem culpou terroristas comunistas, mas os budistas sabiam que os oficiais do exército receberam ordens internas para tentar dispersá-los.

(Fonte: Posterazzi/Reprodução)
(Fonte: Posterazzi/Reprodução)

Após 1 mês de uma intensa pressão popular, o governo de Diem já estava sob forte crise, porém ainda inflexível contra às políticas que havia estabelecido contra o budismo. Até que em 10 de junho de 1963, os maiores jornais dos Estados Unidos foram informados sobre “um grande evento” que aconteceria na manhã do dia 11, na rua em frente à Embaixada do Camboja, em Saigon.

A maioria dos jornalistas ignoraram o comunicado, visto que vários desses “eventos” já tinham sido anunciados desde a eclosão da crise, mas David Halberstam, do The New York Times, e Malcolm Bronw, da Associated Press, foram um dos poucos que atenderam ao chamado.

Chamas como protesto

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
(Fonte: Pinterest/Reprodução)

Como combinado, naquela manhã cerca de 500 monges marcharam atrás de um carro enquanto carregavam faixas denunciando as políticas discriminatórias do governo de Diem, exigindo que as promessas de igualdade e tolerância religiosa fossem estabelecidas.

Quando o grupo chegou em seu destino final, a poucos quarteirões do então Palácio Presidencial (atual Palácio da Reunificação), cercados por policiais que faziam barreiras de contenção, os sacerdotes formaram um grande círculo.

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
(Fonte: Pinterest/Reprodução)

O monge Thich Quang Duc desceu do carro junto com mais dois companheiros. Um deles colocou uma almofada no meio da rua, onde Quang Duc se sentou na posição de lótus, enquanto o outro seguiu até o porta-malas do automóvel e tirou 5 galões de gasolina.

Após recitar uma oração contando as contas de um colar de madeira, Quang Duc entrou em um estado de meditação profundo em poucos minutos; logo depois, um dos monges despejou sobre o homem toda a gasolina. Então, calmamente, Quang Duc apanhou um fósforo e o riscou.

A multidão assistiu resignadamente as chamas tomarem conta do corpo do monge, que não se moveu um milímetro de sua posição, tampouco alterou sua expressão enquanto o fogo consumia-o.

O coração inabalável

(Fonte: 4Plebs/Reprodução)
(Fonte: 4Plebs/Reprodução)

Quang Duc queimou durante 10 minutos e seu cadáver só saiu da posição quando tombou para trás, com as chamas já praticamente apagadas. Sob absoluto silêncio e pacificidade, alguns monges cobriram o corpo dele com roupões e transportou-o de volta ao carro.

O cadáver foi levado a um templo no centro de Saigon e cremado, desta vez em uma cerimônia apropriada. O mais curioso disso tudo foi que o coração do monge permaneceu intacto, apesar de ter sido submetido ao fogo por duas vezes. O órgão se tornou uma relíquia e guardado no Templo Xa Loi.

Enquanto a fumaça escura e oleosa se desprendia do corpo de Quang Duc no meio da rua, Malcolm Browne capturou o momento em uma fotografia que intitulou The Burning Monk, que recebeu um Prêmio Pulitzer.

A imagem se tornou um retrato bárbaro da repressão religiosa pela influência da potência católica ainda no século XX. A crise religiosa no Vietnã e a falta de plano de governo de seu presidente culminaram em um golpe de Estado que acabou com a morte de Diem, em novembro de 1963. 

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