Como a indústria de cirurgia estética coreana 'destrói' sua sociedade

07/08/2023 às 13:005 min de leitura

A crise também é estética – e isso nunca fez tanto sentido. Em um relatório anual de pesquisa global sobre procedimentos estéticos e cosméticos, a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) divulgou que houve um aumento geral de 19,3% nos procedimentos estéticos realizados em 2021, fechando o ano com 17,5 milhões de procedimentos não cirúrgicos realizados no mundo.

A lipoaspiração foi o procedimento cirúrgico estético mais realizado em 2021, com 1,9 milhão de pessoas deitando em uma mesa para fazê-lo. Os cinco principais procedimentos mais populares continuam sendo a lipoaspiração, o aumento mamário, a cirurgia de pálpebras, a rinoplastia e a abdominoplastia. Entre os não cirúrgicos está o Botox, com mais de 7 milhões de intervenções realizadas pelo mundo.

Muito embora os Estados Unidos sejam líderes em intervenções estéticas, com 30,4% de todos os procedimentos não cirúrgicos e 15,5% de todos os cirúrgicos, eles ainda não conseguiram chegar ao patamar da Coreia do Sul. Lá, a ultravalorização da aparência na sociedade, combinada com a indústria do entretenimento e a herança histórica, fizeram da nação uma espécie de Meca das intervenções estéticas.

A aparência é o que importa

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

O Ministério da Saúde e Bem-Estar da Coreia relatou que 397 mil turistas, dos quais 48 mil eram de países ocidentais, pousaram no Aeroporto Internacional de Incheon, em Seul, no ano de 2017 para realizar seus sonhos estéticos. Combinados, eles gastaram cerca de US$ 200 milhões, representando 33,6% da receita total de pacientes estrangeiros, um gasto quase quatro vezes maior em relação a 2012.

Se pelo menos um quinto dos turistas vão à Coreia para fins estéticos, é porque desde 1994, como mostrou uma pesquisa do Instituto Gallup, 86% da população sul-coreana acredita que a “aparência é o que importa na vida”. Portanto, qual outro país do mundo seria melhor para fazer uma intervenção desse tipo do que aquele no qual uma em cada cinco mulheres já fizeram algum procedimento estético?

Afinal, na Coreia, o presente da maioria das meninas quando atingem os 18 anos não é um carro, mas uma volta com tudo pago pelo distrito de Gangnam, em Seul, onde 500 clínicas estéticas se enfileiram com preços disputadíssimos para realizar o sonho de alguém ter a mandíbula remodelada ou as pálpebras "consertadas".

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Esse era o caso de Erin Yi, uma estudante da Universidade da Califórnia que, apesar de ter nascido fora da Coreia, cresceu ouvindo que seria levada para lá quando atingisse a maioridade só para "consertar" suas pálpebras. Erin nasceu com monopálpebras, uma característica tipicamente vista em povos asiáticos, especialmente coreanos, enquanto as pálpebras duplas são conhecidas por serem um traço dos ocidentais. Elas são tão admiradas na cultura coreana que se tornaram tradição que as meninas as recebam de presente ao se formarem no Ensino Médio.

Por si só, esse já é um tópico delicado de um debate espinhento em que não há um consenso por parte de sociólogos, médicos ou historiadores. De um lado, estão aqueles que acreditam que essa “aversão” pelas monopálpebras seja uma necessidade dos asiáticos em se encaixarem em um ideal de beleza eurocêntrico. Do outro, no entanto, está quem alega que a raça ou a intenção de “parecer branco” não é mais central nas escolhas dos coreanos modernos para modificar sua aparência. Em vez disso, eles querem apenas ser pessoas que aparentam ter feito cirurgias plásticas.

O mapa do horror

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Para muitos, essa supervalorização da aparência desde muito jovem pode parecer uma falha moral ou de caráter, mas não para uma sociedade com mais de dois milênios de história construída sobre o confucionismo. A filosofia e o sistema de valores desenvolvidos pelo filósofo chinês Confúcio exerceram grande influência em várias sociedades asiáticas, sobretudo a sul-coreana, pregando a modéstia e a apresentação de si mesmo como uma demonstração de respeito pelos outros e pela sociedade.

Esses valores são constantemente atribuídos à beleza e à aparência física — por serem centralizados na importância de cultivar virtudes pessoais tanto quanto a benevolência, justiça, sinceridade, respeito, lealdade e retidão moral. A cultura confucionista incentivou por séculos seu povo a cuidar de sua aparência para manter uma imagem respeitável e harmoniosa perante o próximo. Em algumas interpretações da filosofia de Confúcio, a beleza física foi vista como uma manifestação externa da virtude moral interna. Portanto, indivíduos considerados bonitos podem ser vistos como mais virtuosos ou moralmente superiores.

Séculos de contato da Coreia com outras nações asiáticas reforçaram essa ideia de percepção da beleza e valorização da aparência física como traço moral, assim como a hipervalorização da própria raça atingiu seu pico após a ocupação da Coreia pelo Japão, em 1910.

(Fonte: Korea Post/Reprodução)(Fonte: Korea Post/Reprodução)

Pelos 35 anos nos quais a Coreia foi governada como colônia, seu povo foi cercado por tentativas de desracialização e imposição de padrões estéticos pelos japoneses. Eles foram submetidos a fortes propagandas falsas que retratavam atores e atrizes japoneses com características físicas consideradas atraentes e desejadas, como traços faciais específicos e cor mais clara da pele.

Essa foi a raiz de uma ênfase pela busca de uma aparência ocidentalizada, a começar pelos olhos, de onde surgiu a tradição em "consertar" o problema que são as monopálpebras. As escolas controladas pelos japoneses impuseram uma doutrinação sobre o que era ser bonito e como os coreanos precisavam se adequar àquela estrutura. Os que não se enquadravam aos padrões de beleza eram discriminados e sofriam todo o tipo de exclusão social, a começar pelo trabalho. Diante disso, os procedimentos estéticos foram a única solução de sobrevivência.

A antiga prática do gwansang (a adivinhação baseada na fisionomia facial) remonta ao século VII e sustenta que as características do rosto de uma pessoa compõem um “mapa”, revelando sua personalidade, seu passado, presente e futuro. Durante a ocupação da Coreia, os japoneses deturparam o gwansang e o basearam à etnia. Havia pessoas especializadas em ler o rosto dos coreanos para determinar se eram mais inteligentes ou nobres para ocupar cargos ou espaços.

Com isso, não só foi criado um ambiente socialmente mais receptivo aos procedimentos estéticos, mas também o Japão "importou" para a Coreia vários cirurgiões-plásticos dos EUA e partes da Europa para se colocarem disponíveis aos coreanos que queriam não sofrer esse corte civilizacional.

Falso deus

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

A indústria de cirurgia plástica coreana floresceu mesmo após a Crise Financeira Asiática de 1997, quando os mercados do país entraram em colapso, obrigando o Fundo Monetário Internacional a reestruturar à força a economia coreana para que se assemelhasse mais com os mercados livres privatizados das nações ocidentais.

Uma vez que isso diluiu as proteções trabalhistas, tornando mais fácil para as empresas demitirem seus funcionários, a crise de desemprego feroz propiciou um mercado mais competitivo, apoiado totalmente na aparência física. Em 2013, em uma pesquisa com 273 diretores de departamentos de recursos humanos na Coreia, o portal de empregos Saramin revelou que 84,2% dos entrevistados alegaram que suas decisões de contratação eram influenciadas pela aparência física e roupas de um candidato.

Com esse efeito, o mercado de trabalho impulsionou as pessoas a se submeterem à controversa “cirurgia do emprego” para terem mais chances de contratação, tendo como base apenas feedbacks agressivos e preconceituosos de recrutadores durante entrevistas. Apesar de a prática ter sido proibida pelo governo coreano em 2017, ela persiste, causando danos psicológicos e socioeconômicos pelo país ao reforçar um padrão de ódio entre as pessoas.

Em uma sociedade tradicionalmente patriarcal, onde as normas culturais e sociais favorecem os homens em muitos aspectos, as mulheres são as que mais saem perdendo quando o assunto é procedimento estético. Uma análise feita pelo Korean Youth Panel Study (KYPS) com 2.230 participantes indicou que a insatisfação corporal das mulheres é significativamente maior do que a dos homens. O centro de pesquisa Statista fez um levantamento em 2020 reforçando que apenas 2% dos homens entre 19 e 29 anos se submeteram a cirurgias plásticas.

Um estudo de 2016, organizado pelo Hospital Gangnam Severance, mostrando que mulheres jovens sul-coreanas com uma imagem corporal negativa são mais propensas a depressão escancara ainda mais o problema: a sociedade coreana sucumbiu à plasticidade da aparência de tal maneira que não há volta. Hoje, submeter-se a uma quantidade absurda de cirurgias estéticas se tornou a única forma de os coreanos se sentirem inclusos e mostrarem que são “o tipo certo de pessoa”. Estamos falando de uma sociedade que prospera na crítica, no ódio, na condenação e no julgamento do próximo com base na aparência, como se tivesse saído de um romance de Scott Westerfeld em que ser normal é considerado “feio” em uma nação que emula extrema perfeição.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Enquanto isso, o culto e a glorificação da beleza coreana cria pessoas que se sentem incapazes, como Christina Lim. Em entrevista à ABC News, a jovem que aspirava a uma carreira como tradutora e intérprete na televisão disse que recebia uma quantidade imensa de comentários de ódio de pessoas que não achavam que ela era “visualmente adequada” o suficiente para aparecer em rede nacional.

Ela não viu outra saída senão deitar em uma mesa de cirurgia por mais de 10 horas para refazer sua mandíbula e remodelar o nariz. Três meses depois, Lim ainda estava deitada em uma cama de hospital sofrendo com as dores do pós-operatório. “Eu não diria que estou bonita, mas posso dizer que estou melhor agora. Estou feliz com esse rosto, acho que vou viver melhor com ele”, confessou aos repórteres da ABC.

Recuperada, Lim voltou a ser procurada pelo jornal e revelou que não recomendava o procedimento a ninguém porque preferia a morte do que as dores do pós-operatório. Apesar disso, ela sentia que tudo valeu a pena e que não teria feito nada de diferente.

Christina Lim ou qualquer outro cidadão médio coreano não têm como fugir dos rostos perfeitos da indústria do entretenimento, dos elementos propagandísticos que incentivam a cirurgia estética a qualquer custo, das alavancas econômicas que intitulam a Coreia do Sul como “a Meca da cirurgia plástica”; muito menos de uma tradição que ainda se agarra ao ditado popular: “Seu deus te cria, mas seu deus-médico é quem te faz”. E para uma sociedade que se equilibra na corda bamba entre ser ou parecer, a decisão em deitar em uma mesa de cirurgia acaba sendo fácil demais.

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