Ciência
08/12/2018 às 04:00•4 min de leitura
É bem provável que, assim que leu a palavra “mumificação”, você pensou no antigo Egito e em seus faraós que repousaram em pirâmides monumentais. Se você gosta do assunto, talvez tenha se lembrado também das crianças Incas encontradas no alto do vulcão Llullaillaco.
Existem muitas diferenças entre eles, principalmente em relação ao processo que os mantém preservados após centenas de anos. Em comum, algo que parece óbvio: todos foram mumificados após a morte.
Porém, esta não é uma regra. Você já ouvir falar na seita de monges budistas que decidiram transformar os seus corpos em múmias ainda em vida? Os membros do grupo, que fica no Japão, têm o objetivo de se tornarem “sokushinbutsu”, algo como “Budas vivos”.
Seita pratica a automumificação
Ficou curioso? Confira todo o processo e as consequências envolvidas neste ato:
Há mais de mil anos, viveu um homem chamado Kukai, que era um sacerdote budista. Durante sua vida, ele fundou a seita “Shingon”, que significa “Palavras verdadeiras”. Lá, ele pregava aos seus seguidores que o poder espiritual poderia ser alcançado através da autonegação e do desenvolvimento de uma vida voltada às crenças.
Assim, os monges desta seita chegavam a ficar por horas sob uma cachoeira gelada meditando, por exemplo. Mas Kukai queria mais: seu objetivo era deixar para trás qualquer restrição do mundo físico. Assim surgiu a ideia do sokushinbutsu, e Kukai começou a transformar o seu próprio corpo em uma múmia.
Kukai, fundador da escola Shingon
O método não é nada simples e leva um longo tempo. Só para se ter ideia, ele foi divido em três fases, e cada uma dura nada menos do que mil dias! Ou seja, são mais de oito anos na luta!
Digamos que você faz parte da seita e quer se automumificar: para começar, seria necessário mudar totalmente os seus hábitos alimentares. Nada de pizza e refrigerante! A partir de hoje, você se alimentaria de nozes, sementes e frutas. Apenas isso.
Você conseguiria fazer esta dieta?
Ficar sentado vendo séries? Também não vai rolar! Além desta alimentação restrita, você teria que se exercitar muito, tudo para perder rapidamente a gordura corporal. O motivo? A gordura tem um alto teor de água, o que provoca a decomposição mais rápida após a morte. Além disso, os cadáveres mais “gordinhos” retêm mais calor, o que ajuda na proliferação das bactérias que promovem a decomposição.
Se você já estava achando esta dieta difícil, saiba que ela fica ainda pior: na segunda etapa do processo (mais mil dias pela frente), você só poderia comer cascas e raízes. Ok, você seria liberado das atividades físicas, mas, no lugar, teria que passar longas horas meditando.
Eles passavam os dias meditando
Como você deve imaginar, a esta altura o seu corpo estaria quase sem gordura. Além disso, como você está passando boa parte do seu tempo parado, o seu tecido muscular também é reduzido. Mas um verdadeiro monge Shingon não está satisfeito. Então, você teria que começar a beber um chá feito da seiva da árvore urushi.
Se você ficou animado com a possibilidade de beber alguma coisa diferente depois de tanta casca, pode tirar o cavalinho da chuva: essa planta é altamente tóxica e, neste caso, tem o único objetivo de te fazer vomitar e ter muita sudorese. É nesta fase que o seu corpo será desidratado, criando condições para a mumificação. Para eles, há outro benefício nesta escolha: o chá se acumula no corpo, impedindo que os insetos comam o cadáver após a morte.
Chá causava vômitos e sudorese
Você já aguentou dois mil dias nesta dieta torturante e está pronto para, quem sabe, deixar este mundo e se eternizar em uma múmia. Sua última morada será em um túmulo pequeno, no qual você vai se sentar sem espaço para se levantar oucc mudar de posição.
Ficou confortável? Espero que sim, porque, depois de tudo isso, seus assistentes vão fechar o seu túmulo. É isso mesmo que você entendeu: você será enterrado vivo! Porém, como a intenção não é morrer de imediato, de brinde você ganha um tubo de bambu para respirar.
Achou que tem mais? Não, é isso aí mesmo: agora a sua vida se resume a ficar sentado no escuro, em um espaço apertado e respirando por um tubinho. Você deve estar se perguntando: “E os assistentes? Como eles vão saber que eu já fui dest para melhor?”. Confesso, eu fui injusta ao não contar tudo. Como presente, você ganha uma companhia: um sino. E, se você não quiser que eles puxem o seu tubinho de ar e te “selem” para sempre, é bom sacudir o presente todos os dias!
Não é nem um pouco difícil imaginar que alguém nesta situação não duraria muito. Então, você cumpriu o seu dever como monge e agora, nos últimos mil dias, e a natureza fará o resto do trabalho sozinho: o baixo teor de gordura corporal e de tecido muscular vão impedir a putrefação normal do corpo, com a ajuda da desidratação e do veneno que você ingeriu por tanto tempo.
Você aguentaria este sacrifício?
Concluída a última etapa, os seus restos mortais serão levados até o templo e você será adorado como um sokushinbutsu, um Buda vivo!
A realidade pode ser ainda pior: estima-se que, de centenas de monges que passaram pelo procedimento, cerca de 20 foram bem-sucedidos. Poucas pessoas têm o autocontrole necessário para aguentar 2 mil dias de restrições rigorosas. Para piorar, mesmo entre os que têm força de vontade, há uma grande possibilidade de o corpo simplesmente não se transformar em múmia após a morte. Apesar do grande respeito pelo esforço, nesses casos, os restos mortais são enterrados.
Galeria 1
Depois de ser muito praticada no Japão, entre os séculos 11 e 19, a automumificação foi proibida em 1877, pelo imperador Meiji. Nesta época, Tetsuryukai estava finalizando a segunda etapa da transformação e, quando a lei foi promulgada, o seu esforço se tornou ilegal.
Tetsuryukai
Mesmo assim, ele não desistiu: prosseguiu com os ritos e foi colocado em seu túmulo em 1878. Depois de mil dias, é claro que os seus seguidores queriam ver o resultado final do sacrifício, mas era totalmente proibido abrir a sepultura. Mesmo contra a lei, eles desenterraram Tetsuryukai e colocaram a sua múmia no templo. Para evitar processos, eles alteraram os documentos que mostravam a data da morte.
*Publicado em 19/4/2016