Ciência
20/03/2018 às 15:01•5 min de leitura
O pessoal do TecMundo, "irmão mais velho" do Mega Curioso, estreou uma nova série de matérias semanais que vai tratar dos grandes nomes brasileiros do mundo científico e tecnológico – nossos próprios "trunfos" que não deixam a desejar para nenhum cientista ou pensador de outras nacionalidades. Alguns deles, às vezes, são muito mais reconhecidos por suas contribuições à comunidade científica e à sociedade no exterior do que aqui mesmo.
A série vai trazer a cada semana um novo nome e estrear com um dos maiores sanitaristas, epidemiologistas e bacteriologistas do mundo, responsável por salvar milhões de vidas no início do século XX no Brasil. Doenças como a peste bubônica, a febre amarela e a varíola encontraram em Oswaldo Cruz um dos maiores inimigos que poderiam enfrentar, mesmo com toda a polêmica em torno dos métodos forçados usados pelo governo brasileiro para conseguir se livrar das enfermidades. Conheça agora um pouco mais sobre esse grande sanitarista brasileiro, um verdadeiro trunfo da ciência.
A febre amarela voltou a assolar praticamente todas as regiões do Brasil em plena virada de 2017 para 2018. O problema causou pânico na população, que correu atrás de vacinas contra a doença, gerando filas imensas nos postos de saúde e o esgotamento do remédio em diversos laboratórios particulares. A situação conseguiu ser controlada com uma campanha de vacinação, mas a epidemia acabou ocasionando mais de 160 mortes de julho de 2017 até o fim de fevereiro deste ano.
No Brasil, obviamente não foi a primeira vez que a doença assolou a população, pois aparece em relatos históricos desde o século XVII. Uma das piores epidemias aconteceu no comecinho do século XX, mas a doença acabou sofrendo um combate ferrenho de Oswaldo Cruz, que convenceu o presidente da época a decretar uma campanha obrigatória de vacinação contra a febre amarela, mas que também gerou um levante popular que ficou conhecido como a Revolta da Vacina.
Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu em 5 de agosto de 1872 na pequena cidade de São Luiz do Paraitinga, encrustada na Serra do Mar bem na beira da estrada que carrega o nome de seu ilustre cidadão, a Rodovia Oswaldo Cruz, caminho tradicional de quem desce da Dutra, vindo da região de Taubaté, para Ubatuba, no litoral paulista. Filho de cariocas, Oswaldo Cruz se mudou para o Rio de Janeiro com seus pais ainda com 5 anos de idade, onde realizou toda a sua educação.
Para praticar a ciência que tanto amava, Oswaldo Cruz montou um pequeno laboratório no porão de sua casa, no Rio de Janeiro
Seu interesse pela propagação de doenças – algo tão comum naquela época em que havia um esclarecimento menor sobre a contaminação por males desse tipo – o levou a cursar a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual ingressou com apenas 15 anos. Foi muito produtivo durante o curso superior, publicando artigos sobre epidemiologia antes de se formar no ano de 1892, com apenas 20 anos.
Para praticar a ciência que tanto amava, Oswaldo Cruz montou um pequeno laboratório no porão de sua casa, no Rio de Janeiro, onde realizava experimentos sempre relacionados à microbiologia. Após a formatura na UFRJ, o cientista foi se especializar em bacteriologia no Instituto Pasteur de Paris, mudando-se para lá entre 1896 e 1897.
Oswaldo Cruz com seu filho em Paris
Em 1899, Oswaldo Cruz voltou para o Brasil e encontrou a cidade de Santos – devido ao seu imenso e movimentado porto – tomada pela peste bubônica. Retomando seu emprego anterior na Policlínica Geral do Rio de Janeiro, ajudou a estudar a proliferação da doença por meio dos ratos e provou por A mais B que apenas o soro adequado fazia efeito no combate à peste.
Para produzir o medicamento, que demorava demais para vir até o país por meio de importação, Oswaldo Cruz ajudou a fundar o Instituto Soroterápico Federal – do qual se tornou diretor – para fabricar aqui mesmo o soro. Hoje, essa organização é conhecida como Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Exterminando os ratos que carregavam as pulgas que, por sua vez, transmitiam a peste, Oswaldo Cruz diminuiu consideravelmente a incidência da doença
O desempenho de Oswaldo Cruz no combate à peste bubônica rendeu a ele a nomeação como Diretor-Geral de Saúde Pública, o equivalente ao Ministro da Saúde atualmente, em 1903. Com apenas 31 anos de idade, o cientista assumiu a responsabilidade de gerenciar campanhas de saneamento em um país gigantesco e, em sua maioria, pobre. Exterminando os ratos que carregavam as pulgas que, por sua vez, transmitiam a peste, Oswaldo Cruz diminuiu consideravelmente a incidência da doença tanto em Santos, onde teve contato com ela ao retornar da França, quanto na capital federal da época, o Rio de Janeiro.
Trabalho cotidiano em seu laboratório
Foi então que Oswaldo Cruz encarou seus maiores desafios (aqueles que o consagraram como um dos maiores nomes brasileiros da ciência): o controle das epidemias de febre amarela e de varíola na cidade do Rio de Janeiro. Nessa época, a capital do Brasil era um conjunto urbano desordenado e imundo, e a campanha envolveu a extinção de focos de mosquitos – no caso da febre amarela – e a tentativa de conscientização do povo.
Isso foi a gota d’água que acabou transformando Oswaldo Cruz temporariamente em um monstro, e alguns veículos da imprensa, inclusive, o pintavam como 'inimigo do povo'
O problema é que o programa de vacinação obrigatória deixou a população em estado de caos: Oswaldo Cruz convenceu o presidente Rodrigues Alves e o congresso a aprovar a lei da obrigatoriedade da vacina. Segundo o cientista, apenas assim seria possível se livrar das doenças que tomavam cada vez mais a população da cidade. A febre amarela acabou sendo erradicada do Rio de Janeiro e reapareceu apenas em 1928. Já com a varíola, o problema foi um pouco maior.
A campanha da vacina obrigatória contra a varíola começou em novembro de 1904 e deixou a população assustada. Além de o povo não ter muito esclarecimento sobre o que era aquilo e muitos terem receio de serem perfurados por uma agulha e injetados com um líquido desconhecido, os agentes sanitários que aplicavam as injeções muitas vezes eram autoritários, violentos e chegavam a invadir casas para vacinar pessoas à força.
Isso foi a gota d’água que acabou transformando Oswaldo Cruz temporariamente em um monstro, e alguns veículos da imprensa, inclusive, o pintavam como “inimigo do povo”. Charges e outras críticas tomavam os jornais e pintavam o cientista como um tirano. Esse descontentamento popular culminou em um dos conflitos mais conhecidos da República Velha no Brasil: a Revolta da Vacina.
Caricatura mostra Oswaldo Cruz "passando pente fino" no Morro da Favela
A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro – um dos mais populares periódicos da cidade na época, inovador por usar recursos muito populares hoje, como as entrevistas e as caricaturas como forma de crítica – chegou a relatar as seguintes palavras em novembro de 1904, mês inicial da campanha de vacinação obrigatória contra a varíola:
O povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz
“Tiros, brigas, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público assaltado e queimado, lampiões quebrados às pedradas, destruição de fachadas dos edifícios públicos e privados, árvores derrubadas: o povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz”.
A revolta ainda quase chegou ao ponto de um golpe militar, pois contou com o apoio de soldados do exército e da Escola Militar da Praia Vermelha no Rio de Janeiro. Dia 10 de novembro de 1904, uma manifestação de estudantes protestou contra as medidas diante do Palácio do Catete. Durante os dias seguintes, mais e mais populares aderiram ao movimento, que se tornou violento, e o quebra-quebra se espalhou por toda a cidade.
Charge critica a cara de Cruzada que a vacinação obrigatória ganhou no Rio de Janeiro em 1904
O problema é que a lei da obrigatoriedade permitia a entrada dos agentes sanitários juntamente com a força policial nas casas de quem se recusava a tomar a vacina. A população ficou extremamente desconfiada, confusa e reagiu. Resumindo: o pau quebrou violentamente para praticamente todo mundo, e quem acabou levando a culpa foi Oswaldo Cruz, que tinha apenas uma ótima intenção.
O cientista se aventurou, inclusive, no poder executivo, tendo sido eleito prefeito de Petrópolis, na região serrana do estado do Rio de Janeiro
Oswaldo Cruz deixou seu cargo na Saúde Pública apenas em 1909, mas somente após ter ganhado o reconhecimento de diversos institutos de saúde e governos no mundo todo. Ele também chegou a gerenciar outras campanhas contra epidemias no Brasil, como na erradicação da febre amarela em Belém do Pará e analisou as condições dos trabalhadores que construíram a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré no meio da Floresta Amazônica.
O cientista se aventurou, inclusive, no poder executivo, tendo sido eleito prefeito de Petrópolis, na região serrana do estado do Rio de Janeiro, em 1916. Antes disso, foi eleito para a cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras em 1912 e participou da fundação da Academia Brasileira de Ciências, 4 anos depois.
Oswaldo Cruz
Apenas alguns meses após ter assumido como prefeito de Petrópolis, com apenas 44 anos de idade, Oswaldo Cruz tirou licença do cargo para cuidar da saúde, cada vez mais debilitada. Largou mão, além de seu emprego, dos cuidados que tinha com seu jardim para repousar em sua casa cercado por familiares e amigos, entre eles o também sanitarista Carlos Chagas (e outro personagem de nossa série). Faleceu em 11 de fevereiro de 1917 por insuficiência renal, mas deixou um legado imensurável para a biologia, a saúde e a medicina preventiva, especialmente no controle de epidemias.
Gênios do Brasil #1: Oswaldo Cruz, o inimigo número 1 das epidemias via TecMundo