Ciência
19/02/2021 às 15:00•5 min de leitura
Um estudo levantado pelo famoso teórico em comunicação George Gerbner apontou que os norte-americanos que consomem mais de 4 horas por dia de noticiários sensacionalistas tendem a apresentar níveis mais altos de medo do crime, podendo ser levados a uma espécie de “pânico moral”.
O Brasil não fica atrás, principalmente no quesito de telejornais considerados “pinga sangue”. Em uma verdadeira corrida midiática para entregar a notícia primeiro e render mais pontos em audiência, os profissionais acabam atrapalhando investigações com um punhado de informações não periciadas, que são apenas especulações ou opiniões recheadas de um sensacionalismo melodramático que pode ser fatal.
Invadindo casas, cenas de um crime e vidas de maneira exploratória e doentia, esse jornalismo age como uma forma de “justiceiro da Segurança Pública”, pois tudo o que importa, no final das contas, é apresentar um culpado para que os espectadores se sintam mais seguros – como aconteceu nos casos de Isabela Nardoni, Eloá Cristina e Suzane Von Richthofen –, em vez de apurar os fatos.
Em 1992, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada resolveram comprar uma escola infantil que passava por um momento de crise. Localizada no bairro da Aclimação, Zonal Sul da capital São Paulo, Brasil, a instituição tinha apenas 17 matrículas e estavam prestes a serem canceladas.
A educadora Paula Milhim de Monteiro Alvarenga, prima de Maria Aparecida Shimada, entrou como sócia no negócio para poder contribuir com mais capital, visto que o casal precisava de alguém para completar a quantia necessária.
Por 2 anos, o trio de sócios se esforçou para reformar a Escola de Educação Infantil Base, remodelar a grade de ensino, ajustar as finanças e conseguir mais alunos. No início de 1994, eles já reuniam 72 matrículas, e a instituição de ensino não parava de crescer e render bons lucros.
Até que algo aconteceu.
Lúcia Eiko Tanoue estava deitada com o seu filho Fábio, então com 4 anos de idade, em cima de sua barriga, quando ele teria começado a se movimentar para frente e para trás e teria dito à mãe que “era assim que o homem fazia com a mulher”, referindo-se a uma prática sexual.
Horrorizada, a mãe pressionou o filho para saber mais sobre onde ele havia visto aquele tipo de atitude. De acordo com o depoimento da mulher, o garoto teria confessado que assistiu a um filme com “gente pelada” na casa de um colega chamado Rodrigo e que teria sido conduzido até esse local em uma Kombi dirigida pelo senhor Icushiro Shimada. Além disso, Lúcia ainda acrescentou que o filho foi beijado na boca, fotografado por 3 homens, sendo um deles Saulo, pai do coleguinha, e sido agredido com vários tapas. A “Tia Cida”, como a criança teria se referido à Maria Aparecida, teria esfregado suas nádegas no menino enquanto outros homens faziam o mesmo.
Tanoue descobriu que o filho experimentou essa violência sexual com mais 3 crianças, sendo eles Rodrigo, Iracema e Cibele, todos com 4 anos de idade.
Em 26 de março daquele ano, Lúcia Eiko Tanoue e Cléa Parente de Carvalho, mãe de Cibele, registraram um Boletim de Ocorrência contra os proprietários da escola na 6ª Delegacia de Polícia. Durante o depoimento prestado por Carvalho, ela contou uma história parecida com a de Tanoue, acrescentando detalhes mais gráficos que teriam sido descritos pela sua filha, como ter um objeto introduzido em seu ânus enquanto os “tios” se deitavam sobre ela.
Ficou registrado que os criminosos eram o casal Shimada, que organizavam essas “orgias pedófilas” na casa de Saulo e Mara Nunes, pais de Rodrigo, e também Maurício Alvarenga, esposo de Paula Alvarenga.
Sem o acompanhamento de psicólogos, as crianças foram interrogadas pelo delegado Edélson Lemos e depois encaminhadas ao Instituto Médico Legal (IML) para que fosse realizado um exame de corpo de delito, visto que elas apresentavam assaduras. Com um mandado de busca e apreensão, a polícia revirou a casa de Saulo e Maria, mas não encontraram nada. Eles seguiram para a Escola Base e também não se depararam com nada que comprovasse o crime.
Inconformadas com a falta de provas enquanto o laudo médico não saía, as mães levaram o caso ao jornalismo da Rede Globo, mas só não sabiam que Lemos já havia comunicado o Jornal Diário Popular sobre um “caso quente envolvendo violência sexual contra criancinhas”, tanto que o repórter Antônio Carlos foi o primeiro a chegar ao local. Então, o circo midiático foi armado rapidamente, uma vez que nada de muito importante ocupava as páginas dos jornais.
Os acusados se declararam inocentes e negaram o suposto crime, porém a situação já havia atingido um ponto em que Paula Alvarenga estava sendo agredida física e verbalmente por policiais para confessar algo que não cometeu.
A essa altura, o repórter Valmir Salaro, correspondente da Rede Globo, já realizava viagens até à delegacia para fazer “inquirições informais” com os acusados e descobrir fatos. Antes que o delegado Lemos pudesse informar o resultado da perícia, o laudo do IML já havia sido vazado em rede nacional. O documento acusava positivo para a “prática de atos libidinosos”, porém não havia sido verificado ainda se as microlesões foram causadas por micose, vermes ou fezes duras – o que alteraria o resultado do exame para inconclusivo.
Apesar disso, o delegado chegou à imprensa com um discurso confuso e repleto de declarações dúbias, inflamando ainda mais os espectadores contra os possíveis criminosos.
O programa Aqui e Agora comandado por Gil Gomes invadiu a casa das mães para poder explorar a vida delas e das crianças, expondo-as sem qualquer ética profissional. A Rede Globo também não ficou atrás, com o Jornal Nacional publicando notícias sem expor a versão dos acusados, sugerindo contaminação das vítimas por HIV e consumo de drogas enquanto mostravam um delegado que fazia alegações falsas e reforçavam para o público a imagem de “pedófilos imperdoáveis”.
A investigação foi tão distorcida e manchada pelo apelo midiático, que a polícia chegou a prender o fotógrafo norte-americano Richard Harrod Pedicini após uma denúncia anônima. Mesmo sem ter nenhuma conexão com os fatos, seu nome foi parar em manchetes da Folha de S.Paulo: “Alunos ligam americano a abuso em escola”.
Enquanto o Brasil linchava os acusados, a Escola Base era destruída e atentados eram movidos contra as residências e as vidas deles. Icushiro Shimada enfartou e desenvolveu o quadro de cardiopatia, enquanto sofria junto à esposa, e Paula Alvarenga desenvolveu fobia, estresse social e síndrome do pânico, forçando-os ao isolamento total da sociedade.
Com a ação dos advogados, as provas da inocência dos acusados começaram a ser reforçadas, inclusive com a própria mãe de Fábio admitindo que seu filho tinha constipação intestinal, o que sustentava ainda mais o laudo inconclusivo do IML. As provas apresentadas pela imprensa eram baseadas no frenesi da população, os depoimentos das crianças nunca foram analisados com profundidade, tampouco elas foram submetidas a analises psicológicas para apurar o que de fato aconteceu para elas pensarem aquilo.
A defesa de outros pais e funcionários também foi essencial para que o delegado Gérson de Carvalho, que assumiu o caso, decretasse a inocência dos acusados em junho daquele ano, embora já fosse tarde demais para que eles pudessem refazer as próprias vidas.
A mídia apenas parou de noticiar a história sem declarar a inocência dos proprietários ou dar qualquer margem para explicações. Diversos processos foram abertos contra o Estado e os veículos de imprensa, porém os acusados não receberam nenhuma indenização pelos danos morais e materiais causados.
A paranoia acabou com o casamento de Paula Alvarenga, que voltou a morar com os pais e nunca mais pôde lecionar de novo. Maria Aparecida Shimada morreu de câncer em 2007 e Icushiro de infarto em 2014, ambos em ostracismo social. Saulo, Mara e Richard se afundaram em dívidas tentando provar a própria inocência, mesmo após a conclusão do caso.
Os desdobramentos do caso Escola Base serviram para reforçar a questão: quem arca com as injustiças e destruição sistemática de vidas nesse tipo de abordagem e julgamento midiático, social e criminal?