Saúde/bem-estar
23/10/2015 às 07:04•6 min de leitura
Uma das coisas mais incríveis nisso de escrever a respeito de pessoas com histórias envolventes é quando, de alguma forma, esses personagens ficam na vida do autor do texto. Quando contei a história da Sabrina Bittencourt, que perdeu a memória durante um almoço de família, acabei tendo mais contato com ela e, há alguns dias, uma publicação de Sabrina no Facebook me deixou pensativa: “Se hoje fosse seu último dia de vida, você estaria fazendo o que está fazendo agora?”, provocou ela. E eu, que estava em casa, assistindo a um filme ruim na TV, pensei: “Não!”.
Estamos tão acostumados com a rotina de trabalhar, estudar, ir para a academia, encontrar alguns amigos e cuidar dos afazeres domésticos de sempre que acabamos nem percebendo a passagem do tempo. Isso sem falar, é claro, na noção equivocada que temos de que viveremos até a velhice. Em teoria, essa é a ideia, mas não há qualquer garantia de que estaremos aqui amanhã para contar história.
E ainda que o mundo esteja passando por todo tipo de problema, é confortante saber que algumas pessoas dedicam a vida a quem já sabe que tem pouco tempo. Assim como a história de Sabrina, que contei aqui no Mega há quase um ano, igualmente inspirador é o trabalho de uma ONG holandesa que você vai conhecer agora.
Kees Veldboer é um motorista de ambulância e, portanto, já esteve ao lado de muitas pessoas em seus últimos momentos de vida. Em novembro de 2006, quando transportava o paciente Mario Stefanutto de um hospital para o outro, recebeu a notícia de que a nova instituição receberia o paciente com um pouco de atraso.
Stefanutto, que havia passado três meses dentro de um quarto de hospital, obviamente não estava querendo voltar para essa rotina. Veldboer perguntou ao paciente se ele gostaria de ir até outro lugar. O paciente, que era um marinheiro aposentado, pediu para que o motorista o levasse até o canal de Vlaardingen, onde poderia ver a água e se despedir do Porto de Rotterdam.
Quando esse episódio aconteceu, fazia um dia ensolarado, e os dois ficaram observando as águas do canal de Vlaardingen, juntos, durante aproximadamente uma hora. “Lágrimas de alegria rolaram no rosto dele. Quando perguntei se ele gostaria de ter a oportunidade de navegar de novo, a resposta foi que seria impossível porque ele estava deitado em uma maca”, contou o motorista.
Kees Veldboer
A proximidade com o paciente, que estava claramente vivendo seus dias finais, deixou Veldboer determinado a fazer de tudo para que o marinheiro tivesse seu último pedido atendido. Para isso, perguntou ao seu chefe se poderia usar a ambulância em uma de suas folgas, pediu a ajuda de um amigo e entrou em contato com uma empresa que realiza passeios de barco no porto de Rotterdam.
Todos ficaram felizes com a possibilidade de ajudar o aposentado e, na sexta-feira seguinte à transferência do paciente para outro hospital, Stefanutto se surpreendeu com a presença de Veldboer em seu quarto de hospital. Ele nem sabia, mas naquele dia ele velejaria mais uma vez.
Algumas semanas depois do passeio, o marinheiro aposentado morreu. Antes, porém, escreveu uma carta: “Me faz bem saber que ainda existem pessoas que se importam com os outros... Eu posso dizer pela minha própria experiência que um pequeno gesto vindo de alguém tem um impacto enorme”, disse ele.
Primeiro desejo realizado: Mario Stefanutto voltou ao porto.
A partir daí, nasceu a Stichting Ambulance Wens, instituição que Veldboer organizou junto com a sua esposa, Ineke, que é enfermeira. Oito anos depois do passeio de Stefanutto, o casal Veldboer já conta com a ajuda de 230 voluntários e seis ambulâncias. Em oito anos, pelo menos 7 mil pessoas doentes tiveram seus últimos pedidos realizados pelo grupo.
Em média, a instituição realiza quatro desejos por dia e atende pacientes de qualquer idade, contanto que estejam em um estágio final e não possam ser transportados de outra maneira a não ser em uma maca.
Veldboer conta que o paciente mais novo atendido pela Stichting Ambulance Wens era uma garotinha de apenas 10 meses de idade que esteve internada desde o dia de seu nascimento. Seus pais queriam sentar-se com ela, no sofá de casa, pelo menos uma vez. E assim aconteceu.
A paciente mais velha foi uma mulher de 101 anos que queria andar à cavalo pelo menos mais uma vez: “nós a colocamos em cima do animal com a ajuda de um caminhão e depois a movemos para uma carruagem puxada por um cavalo – ela acenava para todos, como se fosse da realeza. Aquele foi um bom pedido”, disse o motorista.
Felizmente, existem outros grupos de pessoas que realizam desejos de pacientes terminais, mas a organização de Veldboer foi a primeira a dar suporte com ambulância e assistência médica completa. Há sempre uma enfermeira a bordo, e o veículo é conduzido por motoristas altamente capacitados, que já treinaram com policiais e bombeiros. Como se não bastasse, a ambulância da Stichting Ambulance Wens tem uma janela para que os pacientes aproveitem a paisagem enquanto são transportados – ao entrarem no veículo, todos são apresentados ao ursinho Mario, que tem esse nome em homenagem a Stefanutto.
O ex-soldado Roel Foppen, que também conduz a ambulância, diz já ter realizado 300 pedidos e garante que esse tipo de ação faz um bem danado a quem participa: “Isso dá a nós, voluntários, muita satisfação”. Em certa ocasião, ele chegou a ir até a Romênia para atender ao pedido de uma paciente chamada Nadja, que tinha morado na Holanda por 12 anos.
De acordo com Foppen, Nadja estava tão doente que a equipe não podia nem ao menos encostar nela. Ainda assim, ela queria ir até a Romênia para poder morrer ao lado de seus filhos, um de três e outro de sete anos. No meio do caminho, a saúde de Nadja piorou e a equipe parou em um hospital. A equipe médica aconselhou que ela ficasse internada, mas o seu único desejo era chegar em casa a tempo de ver seus filhos.
Nadja
A equipe levou o pedido da paciente a sério e, para realizar seu desejo, dirigiu pela Alemanha, pela Áustria, pela Hungria e, quando chegaram à fronteira da Romênia, Nadja disse: “Coloquem a minha maca para fora, agora eu já posso morrer”. Foppen explicou a ela que faltavam apenas 600 km até que eles chegassem à sua casa, e assim ela resolveu esperar. Algum tempo depois, a equipe recebeu um cartão da família de Nadja dizendo que ela havia morrido duas semanas depois de voltar para casa.
Outro fato incrível do trabalho realizado pelos voluntários é a energia de cada paciente, que se renova quando sabe que vai sair com a ambulância de Veldboer.
Outra voluntária, Mariet Knot, que trabalha como enfermeira, afirma que é uma honra dividir esse tipo de momento com os pacientes. “Cada vez é especial. Você discute isso com os seus colegas a caminho de casa e é sempre especial, não importa o quão pequeno seja. Eu conheci uma senhora que só queria uma taça de Advocaat (um licor cremoso de ovo) em casa. Então o filho dela comprou uma garrafa, nós fomos até a sua casa, ela bebeu uma colherada e nós voltamos. Esse era o desejo dela”.
Ineke Veldboer e a marido, Kees.
Knot conta que as pessoas costumam perguntar se trabalhar com doentes terminais todos os dias não é uma atividade exaustiva, emocionalmente falando. “É sim, mas frequentemente as pessoas estão prontas para morrer porque elas estão tão abaixo da linha, e então é legal dar a elas alguma coisa que elas realmente desejam”, explica.
O policial aposentado Frans Lepelaar, que também é um voluntário, explica que muitos dos pedidos incluem voltar para casa, dizer adeus a amigos e familiares e estar presente em casamentos e funerais. Muitos, no entanto, fazem questão de olhar o mar pela última vez. Ele explica que passeios em zoológicos também são pedidos populares – algo em torno de 15% dos desejos.
Um dos pacientes que quis ir ao zoológico foi Mario, um homem de 54 anos que tinha dificuldades cognitivas e gostaria de se despedir dos seus colegas do zoo de Rotterdam, onde havia trabalhado durante 25 anos. Sempre depois de realizar sua jornada, Mario visitava os animais, e na sua última visita ao local não foi diferente.
Mario e a girafa.
Quando a equipe se aproximou das girafas, uma delas caminhou até Mario e lambeu o rosto dele. O homem estava doente demais para falar qualquer coisa, mas a equipe percebeu, pela expressão em seu rosto, que ele estava feliz por ganhar um beijo de uma de suas amigas. A foto, na época, estampou as páginas de alguns jornais holandeses.
“Aprendi que temos que encontrar a felicidade nas pequenas coisas, e esse deveria ser o seu objetivo em vez de desejar aquilo que você não tem”, explica Ofal Exoo, que também trabalha realizando desejos.
“Teve essa senhora que queria ir ao casamento do seu neto. O hospital havia dito a ela que não, mas ela estava desesperada, então no final das contas eles nos chamaram. Nós a levamos até lá e ela amou. No caminho de volta, ela se virou para nós e disse: ‘Vocês não fazem ideia como isso foi importante para mim’”, contou Veldboer. A paciente em questão morreu no mesmo dia.
Parte da equipe de voluntários.
Knot defende a importância do trabalho que ela e toda a equipe realizam e resume isso citando o caso de um homem cujo último desejo era voltar ao centro comercial de sua família: “Toda a família veio ao armazém para dizer adeus a ele na maca. Ele queria ir e ver todas as máquinas, revisitar todos os cantos escuros onde ele havia arrumado coisas. Enquanto a equipe empurrava a maca ao longo do armazém, o resto da família acompanhava, em uma espécie de procissão. Ele [o paciente] tinha dificuldade para se comunicar, porque usava linguagem de sinais – ele e seus três irmãos eram surdos, assim como duas das esposas deles. Então, o motorista [que era um voluntário novo e que sabia usar a linguagem de sinais] começou a falar com as mãos. Foi tão extraordinário! Os familiares falaram que ficaram arrepiados. E então você pensa que coincidências não existem”.
Ler a história desses pacientes e os depoimentos dos voluntários foi algo que me remeteu à publicação da Sabrina, sobre a qual falei no começo do texto. Há quem saiba quando a vida está acabando e, por mais triste que isso seja, ainda tem tempo de realizar algum pedido, graças à ajuda de pessoas como essas. Da mesma forma, no entanto, há quem morra acidentalmente, a caminho do trabalho, atravessando a rua, como já cantou brilhantemente um cara chamado Raul Seixas.
E aí, leitor, se o dia de hoje fosse o último da sua vida, você não gostaria de aproveitá-lo de uma maneira diferente?