Artes/cultura
21/02/2020 às 14:00•5 min de leitura
Na madrugada de sábado do dia 10 de outubro de 1928, por volta das 4h00, um trem a vapor carregando 54 passageiros ia da cidade de Leeds para a de Briston e passaria pela estação ferroviária da cidadezinha de Charfield, a sudoeste do condado de Gloucester, na Inglaterra. Na condução da locomotiva estava E.H Aldington, um experimente maquinista que trabalhava com trens de passageiros desde 1924, mas que havia começado a sua carreira com os trens de mercadorias em 1916. Ele estava acompanhado do bombeiro F.C Want e do guarda Miller na parte de trás.
Os três homens trabalhavam juntos há cerca de 3 anos e eram considerados os melhores pela maioria dos profissionais do ramo. A única diferença entre eles, porém, era de que Aldington era bem mais experimente naquela rota que passava por Charfield do que Want, que só a fizera por 30 vezes durante os anos em que os homens trabalharam juntos, pois nem sempre as escalas para ela batiam.
Na mesma linha férrea da estação de Charfield, entrava e saia durante os turnos, a partir das 21h45, o trem de carga da Great Western Railway (GWR), com 49 vagões e sempre três tripulantes: o maquinista Gilbert, o bombeiro H. Sutton no motor e o guarda W. Fortune no furgão de freio.
Na linha, havia também o trem de mercadorias da LMS, que ia de Westerleigh para Gloucester, com 45 vagões vazios e com G. Honeyfield como maquinista, o bombeiro A. Clarke no motor e o guarda Callway no freio.
A madrugada foi descrita como muito enevoada, muito embora os oficiais especialistas da ferrovia tenham alegado que as condições de visibilidade eram mais do que aceitáveis, por isso não empregaram o uso dos sinalizadores de tempo. Esse foi o começo do erro.
No que o comboio se aproximava da estação de Charfield em alta velocidade, Aldington pediu para que Want procurasse pelo sinal, porém a falta de conhecimento da linha por parte dele e o tempo ruim, dificultaram ainda mais que ele localizasse o sinal. Apesar do pedido repetido do maquinista para que o bombeiro lhe desse algum parecer da situação, ele só conseguiu fazê-lo quando a locomotiva estava a cerca de 55 metros da plataforma. Want enxergou um sinal verde e passou isso para o companheiro antes de colocar mais carvão no motor.
As investigações indicaram que o sinaleiro da estação, Henry Button, teria aceitado LMS e o GWR na estação. Ele teria sim deixado ligado o sinal vermelho para que o trem de passageiros diminuísse a velocidade e parasse quando estivesse próximo ao seu destino, para que não colidisse com os demais estacionados que estavam em processo de partida.
Contudo, Want acabou lendo o sinal como verde, talvez tanto por influência de seu desconhecimento para reconhecer a indicação naquela linha, quanto pelo fato de os sinalizadores de tempo também estarem desligados, apesar da quantidade de névoa no ar.
E então, para o espanto de Aldington, o motor estacionado dos trens da GWR, emergiu como uma grande parede da cortina que era o nevoeiro, a sua silhueta recortada contra o céu escuro da noite. O maquinista rapidamente acionou os freios antes de se abaixar para tentar se salvar do inevitável impacto.
Metade do trem de passageiros de Aldington descarrilou ao atingir com o GWR, lançando vários de seus vagões para fora do trilho principal que levava à plataforma. Duas pessoas morreram imediatamente no impacto. O comboio do GWR foi arremessado para o lado esquerdo ao ser atingido, enquanto o motor ficou preso contra o pilar da ponte que havia logo em cima, causando uma espécie de efeito sanfona. No que os vagões do LMS se desprenderam do eixo da locomotiva, o impulsionamento vindo do impacto do trem de passageiros, lançou vários carros do composto para cima, empilhando-os, até que parassem apoiados no lado norte da ponte. Os seus tetos foram arrancados e jogados no passeio da estrutura.
No momento da batida, os cilindros de gás dos quatro primeiros vagões do comboio de passageiros que ia para Charfield, foram perfurados, disparando uma nuvem de gás que rapidamente formou uma bolha hermética envolvendo os carros, a estação e a ponte. O fogo veio logo em seguida, numa explosão única, estendendo labaredas que lamberam sete dos onze carros do trem, consumindo tudo.
Em poucos minutos, os trilhos da estação de Charfield se tornaram um inferno, com chamas tão altas que atingiram 12 metros de altura contra o céu noturno e foram vistas queimando a quilômetros de distância. 14 pessoas morerram presas na quantidade de ferro retorcido dos vagões que impedia a saída. Mais 38 vítimas que se espalharam pela linha a tempo de não serem atingidas pelo fogo, ficaram gravemente feridas.
Os cidadãos mais próximos que ouviram o estrondo do imapcto e foram correndo ver o que havia acontecido, junto com os funcionários da estação de Charfield, correram para tentar resgatar todos aqueles que estavam presos nas ferragens dos carros que ainda não tinham sido atingidos pelo fogo. Relatos cheio de culpa de vários sobreviventes, narravam o horror e a dor que era ter que ignorar os gritos de socorro daqueles que já não poderiam ser mais salvos da iminência das chamas que se alastravam.
Dos 14 corpos totalmente carbonizados, 12 deles foram tão gravemente queimados que se tornou praticamente impossivel a identificação que não fosse através de jóias e objetos pessoais que haviam resistido a voracidade do fogo.
Dois desses corpos pertenciam a crianças que jamais foram identificadas por ninguém. Elas foram encontradas longe de qualquer companhia adulta, mas estavam juntas, uma ao lado da outra quando morreram. Ninguém jamais foi capaz de descobrir se elas de fato viajavam sozinhas ou se algum membro da família estava perambulando pelo comboio do trem no momento da colisão.
Na análise que os legistas realizaram, descobriram que se tratava de um menino e uma menina, certamente irmãos. Os médicos aguardaram a reclamação de seus cadáveres nas duas semanas seguintes. Porém, quando chegaram à conclusão de que isso não aconteceria, eles os enterraram, assim como os outros, numa vala comum e sem marcação.
Após isso, os pequenos corpos encontrados nos destroços do horrível acidente, ganharam automaticamente uma aura recheada de mistério. Os boatos, teorias e rumores foram deflagrados através da mídia acerca da identidade dos dois corpos. Alguns sugeriram de que eles não passavam de bonecos de ventríloquo. Outros populares eram mais céticos e frios e acreditavam que aquilo tudo não passava de um teatro erguido pelo benefício da audiência, para atrair mais atenção do público e comoção ao caso.
Na época, no entanto, uma mulher se apresentou às autoridades alegando que as crianças eram os seus irmãos, mas acabou não sendo levada muito a sério pela imprensa. Os investigadores da tragédia também não confirmaram nenhum vínculo dela.
Com tudo isso, não demorou para que um tom obscuro e até sobrenatural fosse adicionado aos mistério que cercava as duas crianças não identificadas. De acordo com relatos de habitantes locais, de 1929 até o final de 1950, uma mulher desconhecida vestida toda em preto, sempre fazia visitas periódicas ao túmulo sem lápide das crianças e também era vista na Igreja St. James de Charfield, onde havia um memorial do acidente.
Com o rosto oculto por detrás do tule do véu, essa mulher chorava copiosamente e sempre deixava flores antes de fugir às pressas para o seu carro guiado por um motorista. Ela aparecia normalmente de manhã ou a noite e ninguém sabia quem ela era. As pessoas não tiveram sucesso em se aproximar da desconhecida, pois ela conseguia se safar de qualquer abordagem, como se presentisse a mínima aproximação.
De repente, várias hipóteses passaram a encher as cabeças das pessoas e o caso foi requentado mais uma vez pela a mídia, que clamava repostas das autoridades e insinuava algum tipo de conspiração ou encobrimento por parte deles.
Os trilhos da linha de trem ganharam um tom espectral e assombrado. Funcionários, passageiros e habitantes afirmam até hoje que veem as crianças paradas no meio da via, procurando pela paz de seu descanso.
A mulher de preto, porém, simplesmente interrompeu as suas visitas e nunca mais apareceu para ver o túmulo das crianças ou o memorial do desastre, levando consigo as suas lágrimas, a sua mórbida aparição e as flores bem bonitas que carregava para aqueles a quem dedicava o seu pranto.