Ciência
27/10/2020 às 15:00•4 min de leitura
Há décadas que o tráfico de crianças tem sido uma atividade sem controle na China, e a maneira como o país lida com isso ainda é considerado muito inconsistente, a julgar pela escassez de dados.
Recentemente, as fontes de pesquisas dos jornais chineses indicaram que aproximadamente 200 mil crianças são sequestradas todos os anos, porém as autoridades argumentam que esse número incluí crianças e adultos. Dessa forma, a Associação de Trabalhadores Sociais da China apresentou que 50 mil crianças são sequestradas para o sistema ilegal.
Em primeiro de janeiro de 2014, como parte de um acordo de Transparência Judicial, o Supremo Tribunal Popular da China (SPC) ordenou que os Tribunais Populares divulgassem seus casos de condenação envolvendo tráfico de crianças, à exceção daqueles que pudessem conter informações classificadas ou ameaçassem violar a privacidade individual. O REN declarou que entre 1980 e 2000 mais de 10 mil crianças foram traficadas em toda a China.
Foi observado que o número de crianças traficadas aumentou de 50, no início da década de 1980, para quase 400, em 1994, segundo informações obtidas em sites de crianças desaparecidas da China. Após o ano de 2002, o índice ficou na casa de 250, porém, entre 2010 e 2013, a polícia da província de Fujian detectou mais de 11 mil casos de tráfico de crianças.
Partindo de 1920, durante o estabelecimento do governo comunista na China, ao longo de 30 anos os cidadãos, principalmente das áreas rurais, passaram a preferir filhos homens do que mulheres. Uma vez que as famílias só podiam ter um filho, eles preferiam o sexo masculino para que ele pudesse destinar esforços à agricultura e provesse a segurança dos pais e avós durante a velhice — além de continuarem uma estrutura hierárquica de poder dentro da geração, colocando o homem como superior.
Acredita-se que no meio rural a definição legal chinesa de tráfico de crianças foi por muitas vezes categorizada como uma forma de adoção ilegal. A necessidade de ter um filho homem a todo custo levou muitas famílias a comprar crianças roubadas expostas nas “vitrines” do sistema criminoso. A maioria dos casos não envolvia trabalho forçado, violência ou abuso sexual, apenas a vontade de poder criar um homem na família.
Quando o limite de filhos por família era atingido e nenhum garoto tinha nascido, era comum que muitos casais optassem por vender suas filhas para poder obter os garotos. Muito embora as meninas tivessem pouco espaço nesse mercado, elas costumavam ser destinadas para a fomentação das velhas estruturas sociais, como viver na casa da família que a comprou até que tivesse idade suficiente para se casar com seu irmão de criação.
Mao Yin tinha apenas 2 anos quando sua mãe, Li Jingzhi, precisou deixar a cidade de Xiam, na província de Shaanxi (China), para viajar a trabalho. Na época, ela trabalhava para uma empresa exportadora de grãos que precisava que ela visitasse os fornecedores no campo em época de colheita. Sendo assim, Yin ficou aos cuidados do pai, Mao Zhenjing.
Em 17 de outubro de 1988, Zhenjing foi buscar o filho na creche e parou no caminho de casa para pegar um pouco de água em um hotel que a família era proprietária. Ele deixou Yin por aproximadamente 2 minutos sozinho no carro, e isso foi o suficiente para que não o encontrasse quando voltou.
“Naquela época, as telecomunicações não eram muito avançadas. Então, tudo que recebi foi um telegrama com as palavras: ‘Emergência em casa. Volte imediatamente’. Eu não sabia o que tinha acontecido”, declarou Jingzhi à BBC.
A princípio, o casal achou que Yin seria encontrado rapidamente. “Eu achei que ele talvez estivesse perdido e não conseguiu encontrar o caminho de casa. E que pessoas de bom coração o encontrariam e o trariam de volta para mim”, confessou a mãe.
Entretanto, suas esperanças minaram depois de 1 semana sem nenhuma pista do paradeiro de seu filho. O casal imprimiu 100 mil panfletos com a foto do garotinho e os distribuiu em todos os lugares públicos, chegando a colocar até anúncios em jornais locais na sessão de pessoas desaparecidas. Porém, isso não adiantou nada.
Jingzhi largou o emprego e iniciou uma campanha massiva de busca ao filho. Ela chegou a aparecer em diversos programas de televisão e foi alvo de milhares de reportagens que clamavam: “Onde está Mao Yin?”.
Sua campanha e organização, Baby Come Home, ajudou 29 outras famílias a encontrar seus filhos desaparecidos e se tornou uma das mais famosas de toda a China. Apesar disso, nenhuma notícia sobre Yin surgiu, mas Jingzhi se mostrava sempre esperançosa: “Acredito que um dia encontrarei meu filho”.
Enquanto isso, Mao Yin tinha sido vendido para um casal morador da província de Sichuan, a cerca de mil quilômetros de onde ele foi sequestrado, pelo valor de aproximadamente R$ 5 mil. Um ano após seu tráfico, ele teve o nome alterado para Gu Ningning e criado como filho único pelo casal.
Yin foi amado, cuidado, frequentou a escola e se formou. Certa vez, ele chegou a ver os pais biológicos na televisão e teve uma estranha sensação de familiaridade, ainda mais com sua foto aos 2 anos ocupando o fundo da tela. No entanto, Yin não conseguiu se lembrar de nada.
Até que em 2009, 18 anos depois, o governo chinês criou um banco de dados de DNA destinado aos casais que tiveram seus filhos sequestrados. Em abril de 2020, a polícia chinesa recebeu uma denúncia anônima sobre um homem que vivia em Chengdu, na província vizinha de Sichuan, a 700 quilômetros de distância, que teria sido comprado na década de 1980 quando ainda era criança.
Essa mesma pessoa encaminhou uma foto do homem adulto e, através da tecnologia de reconhecimento facial, as autoridades concluíram que se tratava de Mao Yin, desaparecido há 32 anos. Tudo foi confirmado depois que ele foi submetido a um exame de DNA.
Em 10 de maio, após mais de 300 pistas falsas e anos de espera, Jingzhi finalmente recebeu o telefonema do Departamento de Segurança Pública de Xiam com a tão sonhada notícia.
Em 18 de maio, mãe e filho se reencontraram sob um forte cerco realizado pela mídia chinesa. A primeira palavra que Mao Yin disse foi exatamente a mesma que Li Jingzhi esperou anos para ouvir: “Mãe”.