Ciência
10/11/2020 às 15:00•4 min de leitura
O que aconteceu com a família Dupont de Ligonnès foi algo como a fusão do infame desaparecimento de Madeleine McCann e as loucuras cometidas pelo assassino John List, só que embalado em uma narrativa francesa. No entanto, todo o contexto desses dois casos talvez não consiga superar os acontecimentos deste.
Os Ligonnès são uma antiga família aristocrática francesa que teve origem na comuna de Annonay, localizada na região de Vivarais — sudeste da França. Xavier Dupont de Ligonnès, o patriarca, era vendedor e empresário, chegando até a ser CEO de uma empresa chamada SELREF, com sede na comuna de Pornic.
Foi em meados de 1992 que ele se casou com Agnès Hodanger, que já tinha um filho, Arthur Nicolas, de um casamento anterior, mas que foi criado como filho legítimo de Xavier.
Juntos, o casal teve Thomas (18), Anne (16) e Benôit (13), enquanto viajavam pela França na tentativa de encontrar um local para se estabelecerem. Depois de uma tentativa frustrada de migrarem para a Flórida, eles decidiram ter uma vida tranquila em Nantes, uma cidade a oeste da França.
Antes que algumas coisas começassem a acontecer, os Dupont de Ligonnès eram o clichê de família comum, de classe média alta, e que vivia quase como em um “comercial de margarina” – pelo menos aparentemente.
Agnès sempre foi uma mulher muito religiosa, tendo trabalhado como assistente em uma escola católica, onde parte de suas funções era ensinar a religião. Consequentemente, toda a família foi habituada a comparecer às missas de domingo e crer no catolicismo.
Em 2002, o casal começou a ter problemas conjugais, e a mulher decidiu confessá-los em um fórum médico online chamado Doctissimo. Lá, Agnès se queixou de como Xavier era muito crítico, rígido, autoritário e de como não havia mais ternura na relação, tampouco sexo. Ela ainda afirmou que quando indagava o marido sobre a felicidade dele a resposta era sempre a mesma: “Sim, estou feliz, mas se todos pudéssemos morrer amanhã seria melhor”. Agnès nunca sabia como reagir diante daquele tipo de resposta.
A partir disso, os problemas apenas pioraram, atingindo o seu apogeu em 2005, quando Agnès abriu um boletim de ocorrência contra Xavier após ele agredir seu filho mais velho. O patriarca alegou que se descontrolara por causa do estresse provocado pela falta de dinheiro. Ele havia investido em vários negócios, mas nenhum deles se mostrou lucrativo. A família estava vivendo da herança de Agnès há anos, mas o dinheiro estava quase acabando.
De acordo com a Euro News, Xavier tinha uma amante em Paris e, em 2010, atolado em dívidas e cada vez mais desesperado, ele pediu emprestado a ela 50 mil euros. Foi encontrado um e-mail em que ele confessava à amante que estava falido. Ele ainda revelou que sonhava com desejos mórbidos de queimar a casa ou matar a todos, principalmente Agnès, para que recebesse o seguro de 600 mil euros. Aparentemente, ele se condenava por esses pensamentos.
Em janeiro de 2011, o pai de Xavier faleceu e só deixou para ele um rifle, visto que também havia falido. Em fevereiro, Xavier obteve uma licença para porte de armas e passou a frequentar um campo de tiro que ficava no extremo de Nantes.
O mês de março foi pontuado por aquisições esquisitas feitas pelo homem, como um silenciador de rifle, material de limpeza, munição, uma pá, um carrinho, sacos de lixo, cimento e cal. Era o comportamento típico de quem planejava um assassinato – e como se livrar de um também.
Xavier então pagou as últimas dívidas das escolas particulares de seus filhos, fechou todas as contas bancárias em seu nome e em nome de Agnès, o que precisaria do consentimento dela também. Os vizinhos da família alegaram que viram o homem transportando malas e pertences para o carro na primeira semana de abril de 2011. Como ato final, após rescindir o contrato de aluguel da casa, ele colou na caixa de correio o seguinte pedido: “Por favor, devolver toda a correspondência ao remetente. Obrigado”.
A família foi vista pela última vez jantando felizes em um restaurante local. Naquela mesma semana que eles pareciam estar de mudança, nenhum dos filhos compareceu à escola, tampouco ao trabalho. Nenhum deles comunicou nada a ninguém.
Em 11 de abril de 2011, as famílias de Xavier e de Agnès receberam cartas que explicavam que eles tiveram que se mudar para os Estados Unidos, como parte de um Programa Federal de Proteção a Testemunhas, visto que Xavier supostamente trabalhava em segredo para a American Drug Enforcement Administration (DEA). A carta terminava com a declaração de que a família não poderia ser mais contatada.
De 12 para 13 de abril, Xavier passou a noite no Auberge Cassagne, em Vaucluse, no sudeste da França, sob o nome falso de Laurent Xavier, tendo pago a conta com o cartão de crédito. De 13 para 14 de abril, ele ficou em um hotel em La Seyne-sur-Mer e combinou de encontrar uma ex-namorada, mas isso não aconteceu. Ele retirou 30 euros de um caixa eletrônico e dormiu no Hotel Formule 1 na cidade. Na manhã de 15 de abril, ele fez o check-out e desapareceu, abandonando seu carro no estacionamento.
Em 21 de abril, após visitarem a casa pela 6ª vez por muita insistência dos familiares que não acreditavam que a família havia apenas ido embora, a polícia encontrou os cadáveres de Agnès e dos filhos.
Os corpos estavam em duas sepulturas sob o pátio do jardim dos fundos da casa. A autópsia revelou que os filhos foram drogados e mortos com dois tiros na nuca. Acredita-se que Agnès foi morta enquanto dormia, pois não havia nenhuma substância em seu organismo. Thomas foi enterrado em uma cova à parte porque foi assassinado um ou dois dias depois dos outros. Havia símbolos religiosos ao lado de cada corpo e, apesar do teor sangrento do crime, a perícia não encontrou uma gota de sangue em nenhum local da casa.
Tudo apontava para Xavier Dupont de Ligonnès, porém, com a investigação, “dezenas de interrogações” foram adicionadas aos fatos, apesar do comportamento culposo do homem nos últimos meses até o crime.
Stefan Goldenstein, advogado da família de Xavier, acredita que ele não tinha habilidades para fazer algo assim. “A área onde foram cavadas as sepulturas é muito baixa, seria necessário toneladas de trabalho físico para remover aquela quantidade de terra e Xavier tinha graves problemas nas costas. Era impossível que fizesse isso sozinho”.
O irmão de Xavier acredita que agiotas ou outro tipo de criminosos orquestrou o assassinato para incriminar o homem. No entanto, essa teoria não era compatível com o comportamento do homem registrado por meio de câmeras de segurança e movimentações bancárias após o crime. Ainda, como não houve identificação visual dos cadáveres, o advogado e os parentes tem motivos para desconfiarem de que aqueles eram de fato os membros da família.
Desde 2011, mais de mil pessoas alegaram ter visto Xavier Dupont de Ligonnès em algum lugar, mas nenhuma dessas pistas eram verdadeiras. Troca de identidade, migração ilegal, suicídio ou vida pacata no interior são só algumas das teorias que circulam ao redor de seu paradeiro, que até hoje é um estrondoso mistério.