Estilo de vida
30/04/2022 às 09:00•3 min de leitura
A Ilha de Páscoa é uma das mais remotas do planeta, a 3700 quilômetros da costa do Chile, país ao qual pertence. Também é cercada de mistérios e histórias fascinantes do seu passado, como suas enormes estátuas de pedra — os moais. Mas, além disso, a ilha deu ao mundo um importante medicamento "desenterrado" de seu solo.
A rapamicina é uma substância que diminui a rejeição a órgãos transplantados e ajuda a tratar diversos tipos de câncer, entre outros efeitos positivos. Seu nome é uma homenagem ao nome dado à ilha pelos nativos — Rapa Nui —, mas ela também é chamada de sirolimo, na medicina.
Desde seu lançamento, em 1999, a rapamicina salvou milhares ou milhões de vidas em todo o mundo — e continua salvando, conforme seu uso continua. Mas a história de sua descoberta, repleta de curiosidades, começa algumas décadas antes disso.
Placa instalada na Ilha comemorando a descoberta da rapamicina. (Fonte: Wikimedia Commons)
Tudo começa quando o microbiologista Georges Nogrady partiu com outros 40 cientistas para uma expedição à Ilha de Páscoa. Ele tinha uma enorme curiosidade — como os indígenas não morriam de tétano, se caminhavam descalços no chão, com tantas oportunidades de cortar os pés e se contaminar? O organismo que causa o tétano pode ser encontrado no solo, afinal.
Para responder à sua dúvida, Nogrady dividiu o território em 67 partes e colheu amostras de cada uma delas. Ele só encontrou esporos de tétano em uma. A pesquisa era promissora.
Alguns anos depois, na virada da década, as amostras chegaram aos laboratórios da indústria farmacêutica Ayerst. Lá, os cientistas isolaram os microorganismos encontrados no solo, bem como as substâncias produzidas por eles, para encontrar o segredo anti-tetânico Rapa Nui.
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(Fonte: Wikimedia Commons)
As substâncias do solo de Rapa Nui eram ótimas para inibir o crescimento de fungos e a infecção por eles. Mas também apresentavam um grande problema: tinham efeito imunossupressor fortíssimo. Ou seja, deixavam o organismo vulnerável a outras doenças, ao enfraquecer o sistema imunológico.
Só que um dos pesquisadores, Surendra Nath Sehgal, percebeu que esse "problema" poderia ser uma solução naqueles em que se quer, justamente, que o organismo pare a resposta imunológica — como transplantes. Nos anos 1970, a vida dos transplantados era bem complicada, já que o corpo ficava "lutando contra" o novo órgão.
Por isso, o Dr. Sehgal investiu seus esforços nessa nova linha de pesquisa. Também enviou as amostras para outros cientistas que investigavam remédios contra o câncer — isso porque, em suas experiências, ele notou que a substância também impedia o crescimento de células e, por isso, poderia fazer o mesmo com tumores.
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A história fica ainda mais curiosa na virada para os anos 1980. Nessa época, a Ayerst resolveu fechar seu centro de pesquisas no Canadá e realocar toda a equipe para os Estados Unidos —o que incluía o Dr. Sehgal e seu trabalho com a rapamicina.
(Fonte: Dev Benjamin/Unsplash)
Contudo, a farmacêutica não via potencial financeiro no projeto e ordenou seu encerramento. O Dr. Sehgal não gostou nada disso, então, ele colocou amostras da substância em potinhos de vidro e escondeu no freezer da própria casa. O filho dele, Ajai, ficou responsável por botar os vidrinhos na mudança e garantir que eles chegassem inteiros ao novo lar.
Nos Estados Unidos, a rapamicina permaneceu congelada num canto da casa da família por alguns anos, até que surgiu uma oportunidade: conforme o número de transplantes crescia e surgia a necessidade por uma droga que inibisse o sistema imunológico, a Ayerst pensou em desenvolver tal medicamento. E o Dr. Sehgal chegou com a resposta pronta.
As pesquisas com a rapamicina voltaram, em 1987, e foram muito bem sucedidas. Em 1999, a indústria começou a vender o Rapamune, remédio usado até hoje. Além disso, Sehgal enviava amostras de rapamicina para outros centros de pesquisa, onde se descobriu seu princípio de funcionamento e outros usos para ela.
(Fonte: Hghthai/Pfizer)
A incrível história do Dr. Sehgal e da rapamicina não termina aí. Em 1998, ele foi diagnosticado com um câncer de cólon metastático em estágio 4 e lhe deram seis meses de vida. Como tinha pouco a perder, ele decidiu testar sua droga em no próprio corpo.
O resultado foi ótimo: sua saúde melhorou, ele viveu por mais quatro anos e até conheceu os netos que viriam. Mas Sehgal só teria certeza de que essa melhora era graças à rapamicina se parasse de tomá-la. Foi o que ele fez e, em seis meses, o câncer tomou conta de seu corpo.
Mesmo sabendo que a decisão colocou um ponto final em sua vida, Sehgal sabia que isso era necessário para que a ciência evoluísse. Até o último dia de vida, ele trabalhou em artigos que defendiam o uso da rapamicina no tratamento do câncer.