Artes/cultura
21/09/2018 às 05:30•7 min de leitura
Quando eu era criança, tinha um medo absurdo de chuva, e, quando chovia, só uma coisa me acalmava. Depois de descobrir qual era o meu maior calmante, bastava que alguns poucos pingos começassem a cair para que eu pegasse logo o telefone e ligasse para a minha avó. Ela me dizia, com toda paciência do mundo, que a chuva era importante para que os moranguinhos crescessem.
Até hoje eu uso a versão no diminutivo da minha fruta favorita. Feirante, minha avó me mostrou desde cedo que a natureza é, além de absurdamente linda, mágica o suficiente para fazer com que uma sementinha se transforme em algo saudável e gostoso. Ela tinha um quintal imenso onde plantava tudo o que vendia, e, quando eu chegava lá, íamos as duas colher moranguinhos que depois seriam a sobremesa.
Ter esse tipo de lembrança é algo que me deixa extremamente feliz. Conviver com os avós deve ser algum tipo de sorte. E a minha sorte, eu nem sabia, um dia seria maior ainda.
Arquivo pessoal
Quando eu tinha uns 13 anos, vi que a mesma avó que me enchia de amor desde que me conheço por gente, de repente, começou a ficar agressiva e a contar algumas histórias absurdas. Um dia, nos falou horrorizada sobre os 40 jacarés que tinha visto em seu quintal. No outro, dizia que uma procissão havia passado em frente à sua casa, de madrugada, com todo mundo rezando em polonês.
Os primeiros sinais do Alzheimer geralmente são encarados como “coisa de velho” graças à ideia errada que temos de que envelhecer significa “caducar”. Meu avô, nervoso, tentava explicar para a vó que ela estava equivocada, o que só causava mais confusão.
Com a saúde do vô piorando, minha mãe resolveu, mesmo contra a vontade dos dois, levá-los para a nossa casa. E, de uma hora para a outra, reorganizamos uma estrutura familiar inteira para que dois novos ilustres moradores se acomodassem. Começava ali uma das experiências mais bonitas da nossa vida.
A essa altura a vó já mal reconhecia a minha mãe. Ela sabia quem era o meu avô, apenas. E tinha ciúmes quando me via fazendo algum agrado no meu velho. Era estranho demais presenciar aquilo e, no começo, a gente tentava explicar para ela que eu era sua neta. Depois, aprendemos que quem tinha que entender alguma coisa éramos nós, não ela.
A vó não ficou daquela maneira porque quis. Ela não agia de maneira agressiva porque não gostava da família – imagina! Acontece que, de uma hora para a outra, ela começou a ter delírios e a perder a memória. Não tem como uma pessoa reagir bem diante de uma situação como essa, convenhamos.
E aí o vô morreu. Levantou para ir ao banheiro durante a noite e teve uma parada cardiorrespiratória. Morreu antes de a ambulância chegar. No velório, a vó chorou, ficou ao lado do caixão, rezou e entendeu o que estava acontecendo. No dia seguinte, porém, ela perguntou onde estava o Theodoro. Expliquei que ele tinha morrido no dia anterior e, logicamente, o processo de luto começou de novo.
Foi aí que percebemos que não adiantaria trazer essa lembrança para ela todos os dias. A partir de então, quando ela perguntava do Theodoro, nós dizíamos que ele estava viajando a trabalho. E foi assim durante quase dez anos, já que ela perguntava dele todos os dias.
Os finais de tarde eram difíceis. O dia ia acabando e a vó começava a querer ir para casa. Não adiantava tentar fazê-la entender que aquela era a casa nova dela. Na verdade, nossa preocupação era a de trancar os portões para que ela não fugisse – uma vez saiu sem que ninguém visse e foi até a esquina de casa sozinha, com a carteira de identidade em mãos, dizendo que iria pegar ônibus.
No início, eu me via triste quando pensava na situação da vó com mais calma. Me colocava no lugar dela e, inevitavelmente, imaginava o quão horrível deveria ser a vida do portador de Alzheimer. Felizmente, minha mãe não nos permitiu sentir pena ou medo. Em vez disso, ela nos aconselhava a entrar na “brincadeira” da vó e a encarar a situação com bom humor e carinho. Deu mais do que certo.
Alguns dias depois da morte do vô, a vó acabou encontrando uma boneca, que estava em cima da cama da minha mãe. Ela rapidamente pegou a boneca nos braços e perguntou quem havia deixado aquela criança ali, sozinha. Não foi difícil entendermos que, naquele momento, ela tinha estabelecido uma nova conexão afetiva e que não havia nada de errado nisso.
Minha mãe incentivou que a vó cuidasse da boneca e, a partir de então, chegou a comprar roupinhas e acessórios de bebê, para que a vó se ocupasse. Quando íamos ao mercado, por exemplo, a vó e o bebê iam também. E todo mundo parava para conversar com ela, que contava orgulhosa algum feito recente da criança.
A cada dia o bebê tinha um nome. Foi Daiana por umas três vezes, acredito, e aí eu entendi que nossa memória afetiva vai além dos rostos e nomes que reconhecemos. Naquelas vezes nas quais o bebê se chamou Daiana, eu soube que, de alguma forma, a mesma avó que me fez perder o medo de chuva estava diante de mim, agora tentando cuidar de uma criança diferente.
E lá em casa nós entendemos que a melhor maneira de passar por aquilo era com bom humor. Quando via alguém nervoso ou chorando, a avó ficava nervosa também, inquieta, e por isso fizemos questão de deixar que ela sentisse, sempre que possível, apenas nossas energias positivas.
A casa em que morávamos, na época, tinha quatro quartos que ficavam em uma área mais alta – havia um desnível que separava o restante da casa e, para ir até a cozinha, precisávamos descer uma escada com uns cinco degraus, mais ou menos. Meu quarto ficava ao lado ao quarto da vó, mas, na cabeça dela, cada quarto era uma espécie de casa.
Todos os dias, enquanto estava na escrivaninha fazendo algum trabalho para a escola, ela batia na porta do meu quarto, pedia licença e perguntava se poderia entrar. Eu respondia “mas é claro, vizinha!”, e ela entrava, cheia de cerimônia, e se sentava em minha cama. Às vezes achava que o meu computador era uma máquina de costura e me trazia lençóis para que eu costurasse. E aí eu passava a barrinha do lençol na altura do teclado do computador, como se estivesse costurando, e entregava para ela, que sempre me perguntava quanto tinha sido o serviço.
Ela tinha certa necessidade de lidar com dinheiro e números. Como foi feirante a vida inteira, fazia contas e mexia com dinheiro com frequência. E aí a minha mãe comprou maços de dinheiro de brinquedo, que a gente dava para ela aos poucos. Às vezes ficava horas contando as cédulas, e me pagava muito bem pelas barras de lençóis que eu fazia para ela.
Em 2005, ela teve, sem exagero, uns 10 AVCs (acidente vascular cerebral ou “derrame”, como é popularmente conhecido) e precisou ser internada algumas vezes. Depois de voltar para a casa, ficou acamada por um bom tempo, sem conseguir andar e, a partir daí, a fala foi ficando cada vez mais comprometida.
Depois disso, ela começou a usar fraldas e passou a depender de uma cadeira de rodas. Ficava brava quando íamos trocar suas fraldas – é fácil entender: para ela, eram duas pessoas que, de tempos em tempos, tiravam suas roupas – quem é que não ficaria irritado também? Ela nos dava tapas e falava palavrões homéricos enquanto trocávamos suas fraldas. A melhor forma de lidar com isso? Deixando que ela brigasse. Depois, a enchíamos de beijos e abraços, que eram sempre retribuídos.
Outra coisa curiosa: em situações bem raras ela tinha alguns momentos de lucidez e se lembrava do nome da minha mãe, por exemplo. No dia do meu aniversário de 21 anos, em 2008, minha mãe foi à padaria e eu fiquei com a vó na cozinha. Me abaixei na altura dela, que estava sentada, e disse “vó, hoje é meu aniversário, sabia?” e ela começou a cantar “Parabéns para você”. Emocionada, sorri e chorei ao mesmo tempo. Dei um abraço apertado nela e disse em seu ouvido que a amava muito, ao que ela respondeu: “Eu também amo você”. Nem preciso dizer que foi o melhor presente que eu poderia receber.
Quando me mudei para Curitiba, sentia uma saudade absurda da minha avó. A falta que ela me fazia era realmente imensa, difícil de medir e explicar, e, quando chegava o final de semana e eu voltava para casa, ver a minha pequena era a melhor coisa do mundo.
Com o avanço da doença, ela foi ficando cada vez mais magrinha. Minha mãe sabia que a vó sempre gostou de comer muitas frutas, verduras e legumes, e passamos a fazer papinhas para ela, com suplementos e as frutas que ela sempre amou. Quando eu era criança e ela me levava até o quintal colher moranguinho, eu via o carinho que ela tinha pelas coisas que vinham da terra. Ela nunca colhia uma fruta ou um legume sem dizer “veja só que bonito”. E nós fizemos questão de fazer de tudo para que ela continuasse tendo uma alimentação saudável. Às vezes ela só comia se visse que o bebê estava sendo alimentado também, então a gente fingia que estava dando comida para a criança com certa frequência.
Quando voltei para casa, depois do fim da faculdade, minha mãe tinha se mudado para um apartamento pequeno, de apenas dois quartos. E aí eu dividia o quarto com a minha avó. Nessa altura, ela ficava na cama e em uma poltrona que colocamos ao lado da cama. Nós a erguíamos no colo para mudá-la de lugar e, durante a noite, a mudávamos de posição a cada duas horas.
Eu dormia na mesma cama que ela e acordava todos os dias com ela me cobrindo e fazendo carinho em minha cabeça, como se eu fosse a boneca dela. Ficava brava quase sempre quando limpávamos o seu rosto na cama para darmos o café da manhã. Mesmo com toda a bravura, logo depois do café, quando a abraçávamos e a enchíamos de beijos, ela retribuía o carinho e começava a distribuir sorrisos.
Como foi ficando cada vez mais debilitada, trocamos a boneca por uma menor e mais leve, pois mesmo não conseguindo ficar em pé ela fazia questão de cuidar da sua “filhinha”. Também foi nessa época que passou a chamar a minha mãe, filha dela, de “mamãe” também. Se mãe é quem cuida, mais uma vez a vó estava certa.
Em outubro de 2011, numa manhã de domingo ensolarada e bonita, a vó resolveu ir embora. Deixou para trás uma saudade imensa e um vazio que, a gente sabe, nunca vai ser preenchido. Desde então, minha mãe visita algumas senhoras que, por um motivo ou outro, se sentem sozinhas nessa fase da vida. Eu vou com ela sempre que posso, e sou apaixonada por esses avós novos que a vida me deu de presente.
Muita gente já fez cara feia quando soube que nós trocávamos as fraldas da minha avó. De fato, mexer com xixi e cocô de adulto não é a coisa mais divertida do mundo, mas pior ainda é alguém sentir que não tem condições de fazer as próprias necessidades sem ajuda, então o nosso sacrifício era mínimo perto do sofrimento dela. E eu trocaria mais 1 milhão de fraldas se fosse necessário.
Durante os anos em que viveu acamada, tomamos todos os cuidados possíveis. Ela nunca teve uma escara sequer, que são aquelas feridas comuns em pacientes acamados. Minha mãe teve um cuidado absurdo com a minha avó: ela passava cremes, fazia vitaminas, mudava a vó de posição de hora em hora, dava banho e, claro, também deixou sua vida particular para segundo plano.
Para a minha mãe, foram quase nove anos sem poder nem mesmo ir ao mercado sem depender de alguém para cuidar da vó. Quando ela precisava viajar, por exemplo, era eu quem ficava com a vó. Nunca me causou espanto, portanto, que minha avó a chamasse de “mamãe”.
A Doença de Alzheimer muda a estrutura familiar de um dia para o outro e nos faz rever a vida, até mesmo por um aspecto filosófico e espiritual. Minha avó nos ensinou muito, todos os dias. E o que mais eu aprendi nesse tempo em que passamos juntas foi a valorizar a minha família e a entender que amor, como a mais poderosa das forças, fica gravado em nós mesmo quando a memória vai embora.
Hoje eu tenho 28 anos e a chuva já não me assusta mais. Moranguinho é a minha fruta favorita e a minha mãe, a mulher da minha vida, o meu exemplo maior. Não há um dia em que eu passe sem dizer para a minha mãe o quanto a amo. E por ter dito e demonstrado amor para a minha avó também, quando ela descansou o que me ficou foi uma sensação de que eu aprendi o que precisava ter aprendido com ela. Tem coisa mais bonita do que aprender algo novo? Com a minha vó Helena, eu aprendi que a chuva é necessária, que tudo passa e que amor é parte do que a gente é, e não do que a gente lembra.
Texto originalmente publicado em 21/09/2015