Artes/cultura
19/01/2020 às 14:00•4 min de leitura
Muito embora os campos de concentração tenham caído no conhecimento mundial através do Holocausto na Alemanha nazista, a ideia desse tipo de confinamento civil que explorava o regime de escravidão, promovia o extermínio, a tortura e a mão-de-obra, data de até centenas de anos atrás, com os russos fazendo isso desde meados do século XVIII. Oficialmente, foram os espanhóis que geraram o termo “campo de concentração” em 1896, durante uma rebelião em Cuba. Logo após isso, no ano de 1900, os Estados Unidos foi o segundo país a instaurá-los, já se valendo desse nome.
Com base em ideologias, designações militares e políticas totalitárias, civis eram forçados a deixarem as suas casas e a se reunirem sob a guarda nesses locais. Durante a Segunda Guerra Bôeres, em novembro de 1900, o Império Britânico arrancou as pessoas de seus lares e as jogou nesses campos, para que os oficiais pudessem destruir as suas plantações e fazendas, fazendo com que o exército inimigo perecesse sem fontes de alimento. Estima-se que cerca de 28 mil civis morreram em decorrência de inanição, pneumonia, tifo e desinteira.
Praticamente como inspiração do que aconteceu lá fora, aqui no Brasil não foi por motivos muito diferentes.
(Fonte: EBC/Reprodução)
“Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e perigosas”, ressaltou o escritor Graciliano Ramos em seu romance “Vidas Secas”, que acompanha a odisseia de uma família através da aridez do homem, da sociedade e da natureza.
Quando a Grande Seca castigou o sertão nordestino em 1877 e se tornou um dos fenômenos mais devastadores da história brasileira, responsável pela morte de cerca de 500 mil pessoas, por volta de 100 mil sertanejos famintos migraram para a capital do Ceará em busca de sobrevivência, triplicando a população e “aterrorizando” a sociedade urbana endinheirada.
Então no ano de 1915, no segundo pior período de seca do Brasil, tentando fugir da morte que assolava as regiões do estado, Fortaleza foi invadida por milhares de pessoas novamente. Desesperados e famintos, uma onda de roubos, assassinatos, suicídios e outros crimes se espalharam pelas ruas da cidade onde boa parte dos sertanejos se alojavam. Os acontecimentos foram denominados como uma loucura em massa, pois até carne humana e animal eram devoradas pelos retirantes, tamanha era a fome que sentiam.
Sendo assim, visando preservar as exigências dos ricos e do que o próprio governo considerava como “gente de verdade”, foram criados os chamados “Currais Humanos” ou “Currais do Governo”, que foram os primeiros campos de concentração brasileiros, implementados pelo Instituto de Obras Contra as Secas (IOCS). O objetivo desses celeiros humanos era evitar que os retirantes chegassem à Fortaleza com a sua “miséria, sujidade e caos”, como os anais da época reportavam.
O governador Benjamin Liberato Barroso ergueu o primeiro campo de concentração chamado de Alagadiço que, em tese, deveria abrigar esses refugiados com condições básicas de sobrevivência. Mas a proposta não saiu como estava nos papéis. Usando de força bruta, os soldados capturavam as pessoas e as lançavam nesse campo de 500 metros quadros, com casas de zinco pequenas e espremidas uma ao lado da outra, onde não havia cuidado ou inspeção. Com uma população de 8 mil pessoas e sendo o foco de epidemias, o ambiente não tinha água, comida e nem produtos de higiene básica. Médicos não chegavam ao local e os sertanejos ainda eram forçados a trabalharem na frente de obras sob a vigilância de soldados que os espancavam e torturavam.
Boa parte deles morreram em decorrência das chuvas de setembro e outubro, por insolação, doenças, inanição e também assassinadas para controle demográfico. O campo de Alagadiço foi desativado no dia 18 de dezembro de 1915.
(Fonte: EBC/Reprodução)
Em 1932, a estiagem implacável tornou a devastar o sertão cearense. Os campos de concentração foram levantados novamente em pontos estratégicos de migração através do estado, impedindo que essas pessoas conseguissem chegar à capital sem que parassem em um deles. Dessa vez foram sete no total e com um plano de função diferente do Alagadiço: eles foram colocados próximos à linhas férreas usadas pelos fugitivos da seca para chegar à Fortaleza.
Ao chegarem nas estações, os flagelados eram convencidos pelos oficiais a irem para os campos sob promessas de trabalho e uma vida mais estável. Uma vez lá, eles eram proibidos de saírem. A mão-de-obra vinha das construções estruturais às margens dos trilhos dos trens onde os currais do governo eram instalados exatamente para serem propensos à essa função. Os locais, por sua vez, não passavam de acampamentos repleto de barracas. A comida era nada mais do que um punhado de farinha, um pedaço de rapadura, um pouco de sal, café torrado no sangue de boi — para render em quantidade — e uma ou outra bolacha. Eles tinham a cabeça raspada, eram forçados a abandonarem as suas roupas e se vestirem com sacas de farinha numeradas, como uniformes. Não havia higiene, as fezes eram feitas em qualquer local pela ausência de sanitários o suficiente. A água era quase nenhuma e o lixo era amontoado e recolhido depois de semanas.
Não demorou muito para que a situação ficasse mais degradante, superando os fracassos no Alagadiço em 1915. No curral de concentração alojado em Senador Pompeu, a população cresceu exponencialmente para 16 mil em poucos meses, resultando na escassez de comida, na falta de manutenção total e higiene. Numa onda de mortes assustadora, em média 150 pessoas morriam diariamente e os seus cadáveres eram enfileirados ao longo dos trilhos dos trens.
Com a situação fora de controle, o governo agiu enviando milhares de flagelados para guerrear sem preparo nenhum nas trincheiras da Revolução de 1932, em São Paulo. Não sendo o suficiente para conter uma possível invasão às cidades, o governo então optou pela estratégia de bancar passagens para a Amazônia, onde lá as pessoas trabalhariam como seringueiros. Foi nesse período que os retirantes ocuparam várias regiões do Brasil.
(Fonte: Memorial da Democracia/Reprodução)
A estimativa é de que 90 mil retirantes habitaram os sete campos de concentração até o final da seca, em que eles foram dado como encerrados. Ainda que as ruínas tombadas, os historiadores, os registros e o próprio povo tenham e sejam provas vivas das crueldades de um dos capítulos horrendos da história do Brasil, a Justiça cearense se esforça para manter essa porção fora dos livros didáticos e das vistas das gerações futuras ou de qualquer outra pessoa.
Muitos documentos permanecem até hoje ocultos, mas muita coisa também foi queimada, perdida para o fogo como as vidas dos secos que tentaram se salvar acreditando nas palavras do mesmo tipo de homens desde que o mundo é mundo. Esses morreram com a seca da sociedade, mais do que a da natureza.