Ciência
13/01/2020 às 14:00•4 min de leitura
A uma distância de aproximadamente 40 quilômetros da capital Columbus, no estado de Ohio, cimentada às margens do rio Scioto, está localizada a cidadezinha Circleville. Durante a década de 1960 e 1970, na época com cerca de 12 mil habitantes, Circleville era o perfeito estereótipo do lugar onde muita gente se conhece, onde possuem o costume de se sentar à sombra de suas casas durante o verão ou deixar as portas destrancadas.
No entanto, isso tudo mudou em meados de 1976, quando centenas de habitantes se viram no centro de um enredo de filme slasher nos moldes de Eu Sei O Que Você Fez No Verão Passado, assim que a história das Cartas de Circleville ateou fogo nas vizinhanças e ganhou os noticiários.
Numa manhã de 1976, as caixas de correio de diversos moradores foram entupidas com cartas com remetentes anônimos. O conteúdo possuía o pior tipo de assédio e ameaças, além de relatar com detalhes minuciosos a vida íntima das pessoas. O escritor parecia saber de absolutamente tudo, das conversas que os vizinhos trocavam em frente às suas casas até as que eram ditas no silêncio de suas privacidades. Mas como?
As primeiras palavras do vigilante eram sempre iguais para todos: “Eu sei onde vocês moram. Eu tenho observado a casa de vocês. Isso não é uma brincadeira. Leve a sério”. A caligrafia era variada, o que também levou as pessoas a cogitarem a hipótese de mais de um autor.
Como se essa violência e intimidação toda não fossem o suficiente, num movimento torpe de exposição, várias pessoas também passaram a receber cópias das cartas endereçadas aos seus vizinhos. Foi então que o caso ganhou os noticiários e se espalhou pela comunidade. Apesar de alguns segredos revelados, foi a família Gillispie que virou o centro das atenções. Foi através da vida dela que todos conheceram o poder da fofoca.
Mary Gillispie, esposa, mãe e motorista de ônibus escolar, foi a primeira a receber as cartas anônimas. Entre o terror de estar sendo vigiada durante todo o seu dia, havia a alegação de que ela estava tendo um caso com um respeitado superintendente da escola. O autor apenas exigiu que ela parasse imediatamente antes que todos soubessem de sua relação extraconjugal.
Aterrorizada, a mulher apenas passou a esconder as correspondências que não paravam de chegar e tentou se manter mais atenta ao seu cotidiano na esperança de avistar seu perseguidor. Mary fez bem seu papel de dissimular o pânico que vivia até que seu marido, Ron Gillispie, apanhasse a própria carta praticamente ao mesmo tempo que os outros moradores começaram a recebê-las também.
A mensagem para Ron foi tão doentia quanto precisa: o homem foi ordenado a pôr um fim no caso da mulher ou ele seria morto.
Mary garantiu a Ron que não havia caso nenhum e que certamente tudo se tratava de uma grande chantagem para coagi-los. Como um casal, os dois se esforçaram para ignorar as intimidações insistentes e relevar os danos que tamanha exposição havia causado em suas vidas. Os fofoqueiros locais estavam falando e aumentando pontos sobre o que sabiam a respeito deles.
Duas semanas depois, já no início de agosto de 1977, a família recebeu mais uma carta dizendo: “Gillispie, em duas semanas você não fez nada. Conte a verdade e informe o conselho escolar. Caso contrário, transmitirei na CBS, farei pôsteres, cartazes e outdoors até que todos saibam”.
Foi só então que ambos se empenharam em descobrir quem poderia ser o possível escritor anônimo das cartas. Em razão de desavenças passadas, acabaram colocando as suas suspeitas sobre Paul Freshour, cunhado de Ron. Certos de que deveriam apostar nessa tentativa, o casal decidiu enviar várias cartas escritas da mesma maneira para a casa do homem, alegando que sabiam quem ele era e o que estava fazendo, exigindo que interrompesse aquilo ou seria exposto.
As cartas pararam abruptamente de chegar, porém não por muito tempo.
Na manhã do dia 19 de agosto de 1977, enquanto Mary estava em uma viagem, Ron Gillispie atendeu o telefone de sua casa e ouviu o que a pessoa tinha para dizer do outro lado da linha. Segundo os filhos do casal, o pai gritou com o seu interlocutor num diálogo que deixava claro que ele havia descoberto a identidade do autor fantasma. Enraivecido, o homem quebrou o aparelho, seguiu até seu quarto e pegou um revólver. Antes de sair de casa, ele avisou aos filhos que colocaria um ponto final nesse tormento todo.
Poucas horas mais tarde, ainda pela manhã, a picape do homem foi encontrada batida contra uma árvore em um cruzamento. Ao volante, Ron Gillespie estava morto. A arma estava no banco do carona e faltava uma bala em seu tambor para estar totalmente carregada. Durante a autópsia, foi detectado um nível altíssimo de álcool no sistema de Ron, embora ele tivesse se mantido sóbrio por boa parte de sua vida.
Enquanto as causas indicavam uma morte de natureza acidental e o xerife Dwight Radcliffe decidira encerrar o caso, em mais uma enxurrada de cartas o escritor anônimo implorava para que os habitantes exigissem a reabertura do caso, pois afirmava que o oficial estava acobertando o acidente.
Depois de um tempo, Mary acabou confessando que estava tendo um caso com Gordon, o superintendente da escola para onde trabalhava. Só que, de acordo com ela, foi durante os encontros para falar sobre as cartas que eles começaram a se relacionar e não antes disso – o que não fazia o menor sentido.
De qualquer forma, as cartas não pararam de chegar nas casas das pessoas. Em fevereiro de 1983, às voltas com o ônibus que trabalhava, Mary desceu para arrancar uma placa presa a um poste que falava mal de sua filha e a ameaçava. Nela, havia uma caixa que se revelou uma armadilha que a teria matado se o fio que deveria disparar o revólver assim que ela abrisse a caixa não tivesse falhado.
Ela relatou o incidente à polícia e logo eles conseguiram rastrear o número de série da arma, visto que a pessoa havia falhado em tentar raspar o registro. A pistola era de Paul Freshour que, por sua vez, alegou que essa havia sumido de sua garagem há muito tempo.
Nada convencidos, no dia 25 de fevereiro de 1983, eles recomendaram que Paul fosse até a delegacia para realizar um teste de caligrafia no qual ele deveria escrever algumas das cartas de Circleville que lhe seriam ditadas. Ainda que os especialistas pudessem confirmar que as escritas batiam, a maneira como o teste foi realizado comprometia toda a credibilidade do resultado. Avesso às possibilidades, o xerife decretou que Paul era o escritor oculto e o prendeu ali mesmo por tentativa de homicídio.
No dia 24 de outubro do mesmo ano, Mary Gillispie testemunhou contra o homem e foi embasada pelo aval do especialista em caligrafia. O álibi que Paul possuía nunca apareceu para se posicionar e, por isso, ele foi condenado a 25 anos de prisão.
Durante os anos de encarceramento, Paul Freshour recebeu várias cartas com o mesmo carimbo de Columbia, a centenas de quilômetros do presídio, que ficava em Lima, algumas delas dizendo: “Agora vou te fazer acreditar que não sairá daí. Eu te disse há anos, quando planejamos isso tudo. Você não escutou?”.
Paul Freshour morreu em 2012, ainda preso e sem provas concretas de que ele poderia ter mandado a armadilha para Mary, ou de que ele era de fato um dos autores das cartas, que não pararam de chegar.
As teorias são muitas, a maioria delas infundada. Como um câncer maligno, as cartas se tornaram parte da sociedade ao longo dos anos, uma sombra estranha e ainda indecifrável. Os reais autores delas se foram com o tempo, carregando as respostas de como sabiam tanto e o motivo de ter começado toda essa perseguição.