Ciência
28/01/2020 às 14:00•4 min de leitura
Com a virada do ano ainda fresca pelo ar, na segunda-feira do dia 26 de janeiro de 1948, na área suburbana da cidade de Tóquio, um homem de meia-idade atravessou as portas do Banco de Teigin minutos antes do horário de encerramento das atividades. Ele se apresentou como Dr. Jiro Yamaguchi, inclusive possuía um cartão de visitas para provar o nome, carregava uma maleta e vestia uma braçadeira com a etiqueta do gabinete da Prefeitura de Tóquio. Menos de uma hora mais tarde, o homem deixou o banco da mesma maneira casual e despreocupada com que entrara.
Em instantes, o que ele deixou para trás chocaria a nação japonesa e se tornaria um dos casos de maior repercurssão do sistema judiciário.
O médico Jiro Yamaguchi relatou aos superintendes do banco e aos seguranças que um surto de disenteria havia se espalhado pela região e que ele havia sido enviado para vacinar todos os funcionários do local. As pessoas rapidamente acreditaram e deixaram que o homem cumprisse a sua missão, sobretudo pelo fato de que o país já havia sido bombardeado com graves problemas de saúde pública antes da Segunda Guerra Mundial e também pelos japoneses nutrirem um respeito imenso pelas autoridades dentro da hierarquia da sociedade.
A vacina era composta por uma pílula e duas doses líquidas que seriam aplicadas via oral e deveriam ser engolidas uma seguida da outra. Sendo assim, o médico administrou as doses em 15 funcionários e no filho de um deles. Não demorou mais do que dez minutos para que as 16 pessoas tombassem no chão sob espasmos, espumando e se contraindo como se fossem molas. O que havia nas ampolas era cianeto de potássio e apenas quatro pessoas chegaram ao hospital a tempo de serem salvas. As outras dez, incluindo a criança, morreram nas dependências do local e outros dois algumas horas mais tarde enquanto internados no hospital.
O criminoso deixou o banco carregando cerca de 160 mil ienes, na época U$ 1.392, roubados dos caixas e deixando mais 180 mil ienes para trás e uma chacina total.
As autoridades chegaram ao suspeito do atentado através do hábito dos japoneses de trocar cartões de visitas repleto de detalhes pessoais. Mais duas tentativas de envenenamento seguida de roubo acontecera em outras duas agências bancárias, poucas semanas antes do ocorrido em Teigin. Nas duas ocasiões, no momento de sua entrada, o homem deixara despretensiosamente o seu cartão de visitas, sendo que em uma das ocasiões tinha o nome de Jiro Yamaguchi (que foi descoberto ser uma pessoa fantasma), e em outra marcado como Shigeru Matsui, empregado do Departamento de Prevenção de Doenças do Ministério da Saúde e Bem-Estar.
Em uma busca, o proprietário do cartão possuía um álibi. Shigeru Matsui declarou à policia que havia trocado cartões com 593 pessoas diferentes, mas que apenas 100 destes possuíam a mesma estampa dos utilizados nos atentados, dos quais oito permaneciam em seu poder. Shigeru havia registrado a hora e local da troca de cartões no verso dos que havia recebido, de modo que a polícia decidiu fazer uma busca pelos 92 cartões restantes. Chegaram a recuperar 62 deles e seus receptores foram interrogados e liberados por falta de conexões. 22 deles foram considerados irrelevantes. Um dos oito cartões restantes levou os investigadores até a casa do pintor Sadamichi Hirasawa, que certaz vez trocara cartões com o homem.
O pintor disse ter sido assaltado e perdido a carteira com o cartão de visitas para o ladrão. Em sua casa, a polícia encontrou uma quantia de dinheiro semelhante a roubada do banco Teigin. Sadamichi se recusou a divulgar a origem da pequena fortuna, muito embora acredita-se que fosse oriunda das telas pornográficas que o homem desenhava, como parte de um negócio que possuía e mantinha em segredo para que não tivesse a sua imagem manchada como artista. Com o nome envolvido em quatro casos de fraude bancária, ele ainda por cima não pôde contar com o álibi que seria o responsável por confirmar que ele havia saído para dar um passeio pelas redondezas no dia 26 de fevereiro.
Com tudo indicando que Sadamichi era o autor dos crimes, ele foi preso no dia 21 de agosto de 1948 e encaminhado para que as poucas testemunhas fizessem o seu reconhecimento. Duas delas o identificaram como sendo o envenenador e ele passou três semanas sendo interrogado todos os dias. Em um deles, o pintor alegou ter feito uma confissão que o incriminava apenas para que parassem de torturá-lo. Ele retirou tudo o que disse, mas em vão.
Durante o julgamento de Sadamichi Hirasawa, o plano de defesa de seus advogados para livrá-lo de uma sentença rigorosa, foi claro: admitir ter sofrido de psicose de Korsakoff, um distúrbio cerebral causado por uma deficiência vitamínica induzida em pessoas alcóolatras, e em que uma das causas é a perca de memória recente. De fato, o homem já havia sofrido com a condição num passado desregrado e eles esperavam que isso fosse um fator atenuante para a sua confissão, mas não foi o que aconteceu.
Sadamichi foi considerado culpado pela autoacusação, na época irrelevante se feita dentro de um tribunal ou não ou pela forma como foi obtida, e sentenciado à morte por enforcamento pelo assassinato das dez pessoas no banco Teigin. Os advogados recorreram até 1955, porém a decisão permaneceu a mesma, apesar de não existirem provas conclusivas que o ligava diretamente ao crime.
Ao longo de 32 anos, o pintor esperou a sua vez no corredor da morte, ainda que os 33 ministros da Justiça que passaram pela cadeira jamais tenham assinado formalmente a sua execução. Até mesmo Isaji Tanka, notório por ter condenado mais de 15 homens à morte de uma só vez, em 13 de outubro de 1967, não assinou por duvidar da culpa do homem. Então por que ele ainda continuou preso, mesmo com vários advogados tendo entrado com 18 recursos diferentes para tirá-lo detrás das grades? O que o mantinha lá?
Em adição a inocência de Sadamichi e as grandes dúvidas e suspeitas que rodeavam a sua prisão, estudos da Universidade de Keio afirmaram que o veneno encontrado nos corpos não era cianeto de potássio, que poderia ser obtido facilmente pelo homem, mas acetona cianoidrina, uma solução de ação lenta que tinha sido projetada para o ambiente militar e que só existia nos laboratórios mortais da Unidade 731. Ainda que o homem tivesse acesso ao veneno, precisaria possuir uma capacidade muito aguçada e clínica para manipulá-lo de maneira que não fosse imediatamente letal.
Em 1981, o advogado Makoto Endo alegou que, de acordo com o Código Penal do Japão, o prazo de prescrição para a pena de morte Sadamichi já havia sido excedido em três anos. Portanto, ele apelou pela libertação do pintor, porém o tribunal recusou o argumento apontando no estatuto que ele só se aplicava no momento em que o ministro assinava a sentença de morte, que nunca havia sido feita.
Quando a Anistia Internacional ordenou ao governo japonês que o concedesse a liberdade, a saúde do pintor já respirava os últimos segundos. Até que no dia 10 de maio de 1987, com extraordinários 105 anos de idade, Sadamichi Hirasawa morreu de pneumonia em um hospital prisional, após carregar por 39 anos uma pena que provavelmente não era sua, vitimado por um plano tão fatal quanto o veneno que enrijeceu o corpo daquelas pessoas.