Artes/cultura
18/03/2020 às 14:00•4 min de leitura
Em 9 de abril de 1865, a Guerra Civil Americana chegou ao fim depois de quase 4 anos de um conflito doloroso e fatal que resultou em mais de 1 milhão de mortes — cerca de 620 mil soldados. No entanto, para 2 mil homens exauridos, amputados, doentes e feridos, que desceram o penhasco de Vicksburg nos dias posteriores à batalha, o martírio ainda não tinha terminado.
A cidade foi destroçada pela Guerra Civil Americana, assim como os homens que começaram uma empreitada até o rio Mississipi para embarcar nos barcos a vapor que os esperavam ancorados nas docas e os levariam de volta para casa. Os soldados abatidos pelas agruras do campo de batalha e das prisões em que ficaram confinados tiveram que encarar uma verdadeira cruzada para seguir para oeste, atravessando o sul para chegar a Vicksburg.
Eles viajaram de barco, de trem e a pé. A maioria era jovem, alguns com cerca de 14 anos de idade, e muitos morreram ao longo do trajeto por estarem muito fragilizados e pelo tempo que ficaram confinados. Os que não pereceram pela incapacidade do próprio corpo foram vitimados pelos trens que descarrilavam devido à quantidade de trechos danificados pelos conflitos.
Uma vez que as condições das rodovias eram precárias, a melhor maneira de viajar era pelos rios, que se tornaram as verdadeiras estradas interestaduais na época. Com os pés sangrando, as roupas esfarrapadas, sedentos e famintos, os soldados tiveram que andar cerca de 80 quilômetros por uma velha estrada em Jackson, no Mississippi, para conseguir chegar ao barco Sultana.
O barco a vapor Sultana
A princípio, os combatentes chegaram ao rio Big Black, que marcava a linha divisória entre a parte do Mississippi em posse do exército da União e a parte mantida pelo exército confederado. Depois que atravessaram, eles receberam roupas, alimentos e outros mantimentos no Camp Fisk de suporte para os sobreviventes e ficaram por algum tempo em acampamentos nas cercanias de Vicksburg, até que pudessem enfim embarcar.
Sob o comando do capitão Jason Mass Mason, o Sultana ancorou nas docas do rio Mississippi inicialmente para resolver um problema na caldeira. Mason foi informado que o governo dos EUA estava disposto a pagar uma taxa de US$ 10 per capita para que transportassem os soldados de volta para casa. De repente, os proprietários dos barcos que também estavam atracados ali entraram em guerra para decidir quem levaria mais daqueles homens.
Cerca de 2,4 mil soldados entraram no Sultana em 1865, ultrapassando 6 vezes a sua capacidade de transporte. Com 79 metros de comprimento e há 2 anos fazendo a viagem entre St. Louis e Nova Orleans, o navio de madeira era destinado ao transporte de algodão antes de ser contratado para carregar os homens da guerra. Mason decidiu relevar o vazamento na caldeira, visto que o mecânico tinha informado que o trabalho levaria alguns dias e isso custaria ao capitão a carga humana que não podia esperar para voltar para casa. O homem convenceu o mecânico a fazer apenas alguns reparos temporários que levaram 1 dia para ficarem prontos.
Em 24 de abril de 1865, o Sultana partiu de Vicksburg abarrotado. Sem leitos ou cabines, os feridos e doentes foram quase empilhados no convés, o único lugar com espaço pelo menos para ficar em pé.
Sultana em chamas
O rio Mississippi estava passando por uma cheia, com toda a neve que estava derretendo ao norte, e o Sultana foi atingido por esses problemas logo no início da viagem. O barco superlotado sofreu através das correntes, sendo inundado e até tendo alguns de seus componentes arruinados pela força das águas.
Na primeira parada, atracou em Memphis e alguns homens desceram para visitar a cidade, já que a maioria estava doente e nauseada pela viagem. O barco partiu tarde da noite, rio acima, apesar de a água estar cheia de árvores quebradas e uma infinidade de lixo que dificultava a navegação. Mas o capitão Mason não estava interessado nisso; ele só queria poder entregar a carga de homens o mais rápido possível para voltar a tempo de pegar mais.
A 11 quilômetros de Memphis, cerca de 2h de 27 de abril, a maioria dos tripulantes estava adormecida quando as caldeiras do barco a vapor superaqueceram em consequência do peso e dos reparos malfeitos nos tubos que eram responsáveis por carregar a água quente. O Sultana não aguentou e acabou explodindo, abrindo uma boca de chamas sobre as águas gélidas do rio.
A explosão ceifou instantaneamente a vida de centenas de homens, a maioria soldados do Kentucky e do Tennessee, que dormiam perto das caldeiras para se aquecer. Os primeiros foram atingidos pelos estilhaços de metal ardente e escaldados pelo vapor e pela água liberada. O impacto jogou muitas pessoas para o convés ou direto na água, além de quebrar o Sultana quase ao meio. As chaminés tombaram, a frente do convés desabou e a casa dos pilotos foi completamente apagada.
Fracos demais, os que se lançavam à própria sorte na água morriam de frio ou eram afogados pelo desespero de morte daqueles que não sabiam nadar. Grupos se agarravam um nos outros em meio ao fogo para tentar sobreviver, tomando medidas ingênuas para afastar as labaredas que rapidamente consumiam o pouco que sobrou da embarcação.
A retratação do naufrágio
A maioria dos sobreviventes do Sultana foi parar próximo ao rio Arkansas, que naquela época estava sob controle confederado, e muitos acabaram sendo salvos por moradores, que deram início a uma espécie de operação de resgate. Centenas das pessoas da cidade se mobilizaram para tirar da água aqueles que chegavam às margens do rio praticamente mortos pela hipotermia ou pelos ferimentos causados pela explosão.
Enquanto isso, a carcaça do barco a vapor foi se arrastando ao longo de 9 quilômetros até alcançar a cidade de Marion, no Arkansas, e começar o seu processo final de naufrágio em direção às profundezas do território confederado. De modo caótico, os soldados que ainda estavam a bordo começaram a ser resgatados por barcos e navios de guerra dos Estados Unidos que estavam ancorados ou passando por ali. Um navio construído em 1860, que descia o rio em sua viagem inaugural, chegou ao local da explosão às 3h e foi o que mais resgatou sobreviventes.
Em torno de 1,7 mil pessoas morreram na explosão do Sultana naquela noite fria de abril, uma conta que ultrapassa o notório naufrágio do Titanic, que aconteceu 47 anos depois. A negligência e as mortes não são contempladas até hoje, por isso ninguém lembra que o Sultana foi o pior desastre marítimo da história dos Estados Unidos. Tudo porque o povo norte-americano da época já estava acostumado a ouvir sobre a perda de vidas como resultado da guerra e ainda estava em choque com o assassinato de Abraham Lincoln. A explosão de um "simples" barco não era nada demais...
Raramente mencionada em livros didáticos, a falta de reconhecimento daqueles que fizeram a história os matou mais do que a água fervente que o Sultana lançou naquela noite e os apagou até os ossos, como se nunca tivessem existido.