Ciência
12/01/2021 às 15:00•3 min de leitura
Se amanhã você acordasse de um coma após ter sofrido um acidente e perdido a memória, gostaria de ser lembrado até de seus traumas?
Em outubro de 2019, o Reino Unido se fez essa pergunta após se comover e se chocar com o documentário Diga Quem Sou (Tell Me Who I Am), produzido e lançado pela Netflix. A história de irmãos gêmeos britânicos de 55 anos foi filmada em um estúdio enquanto eles estavam sentados frente a frente à uma mesa, que servia apenas para estabelecer a distância emocional necessária a Marcus Lewis, que carregava segredos da vida dos dois.
“Foi como um thriller psicológico. E, ainda assim, era verdade”, descreveu Ed Perkins, diretor do filme, em uma entrevista à revista Time.
Era 1982 e Alex Lewis tinha apenas 18 anos quando sofreu um trágico acidente de moto em Sussex (Inglaterra). Após 3 longos meses em coma profundo, ele acordou sem se lembrar de quase nada de sua vida, apenas de seu irmão gêmeo, Marcus Lewis.
A partir daquele momento, Marcus foi contando os detalhes da vida que tiveram juntos desde a memória mais antiga de suas infâncias, como nomes de familiares, histórias sobre a adolescência, gostos, hobby e outras aspirações. Alex chegou à conclusão de que até ali ele viveu uma vida comum e de que só tinha do que se orgulhar.
Em meio a histórias de viagens e episódios de felicidade, Alex não conseguia entender o motivo de os dois não morarem mais com a mãe desde a adolescência. Ambos viviam em um anexo no quintal da propriedade e com diversas regras sobre quando e como poderiam ter acesso à casa, da qual sequer possuíam a chave. Apesar disso, Alex, ainda perdido com anos de informações, foi persuadido mesmo com as incoerências que não eram bem explicadas por Marcus.
A vida seguiu e Alex Lewis teve a oportunidade de fazer novas memórias e, de repente, aqueles 18 anos de uma vida narrada como uma história se tornaram distantes. Quando ele já tinha 32 anos e uma vida estruturada, Jill Dudley, a mãe deles, morreu. No mesmo ano, Alex decidira se consultar com um psicólogo para tentar entender o motivo de sentir um estranho desconforto em estar com a mulher, e a resposta ele obteve da pior maneira possível.
Alex limpava a casa dos pais com o irmão após o enterro de sua mãe, quando eles descobriram um armário secreto repleto de brinquedos sexuais. No entanto, não foi isso que chamou a atenção de Alex, mas sim a gaveta trancada que havia dentro do móvel. Após muita insistência, ele conseguiu abri-la e descobriu uma fotografia mutilada dele e de seu irmão nus quando ainda eram crianças em que ambos estavam em posições desconfortavelmente sexuais.
Naquele momento, Marcus Lewis confessou que eles tinham sido molestados e abusados sexualmente durante toda a infância até o início da adolescência pela própria mãe, o que não apenas explicava o puxadinho no jardim da casa como também o fato de Alex se sentir oco com relação a qualquer sentimento que envolvesse a matriarca.
“Quando eu finalmente soube o que tinha acontecido comigo, foi como se eu tivesse todas as respostas emocionais para essa peça crucial no quebra-cabeça que eu sabia que faltava dentro de mim, mas que não conseguia explicar”, revelou Alex em entrevista ao E!Online. À princípio, ele foi consumido pela raiva e reivindicou detalhes do que exatamente havia acontecido aos dois, questionando o motivo de Marcus ter escondido por tanto tempo algo tão vital sobre ele. Em defesa, o irmão respondeu que as memórias eram dolorosas demais e reescrever a história para Alex também foi uma maneira de esquecer o que havia acontecido.
“Eu cheguei a um ponto em que não acreditava mais que tivesse sido abusado. Eu criei essa vida falsa para mim também. Então eu sabia que contar a ele era como contar a mim mesmo que tudo havia sido real”, confessou Marcus Lewis ao Entertainment Weekly.
Enquanto tentava refazer e entender a imagem que havia descoberto sobre si mesmo, Alex demorou duas semanas para conseguir voltar a falar com o irmão. No fim, Alex sentiu que Marcus o salvou, pois o irmão sabia que naquela época ele não teria capacidade de lidar com a memória do abuso de maneira minimamente equilibrada. Além disso, entendeu que Marcus havia sido tão vítima quanto ele, portanto não poderia ser culpado por tentar garantir que pelo menos um deles tivesse um passado feliz, o que fez com que ambos seguissem em frente, só que ainda mais próximos.
“Eu fiquei fascinado pela fraternidade, a mistura de fato e ficção, memória e a questão de quem somos se perdermos nossa memória”, comentou o diretor do documentário à Time.
Antes de publicarem um livro sobre a história deles em 2013, Alex Lewis relutou bastante em revelar os detalhes sobre sua vida ao público, principalmente porque não sabia muito bem como lidar com os sentimentos sobre a mãe que passara a amar depois de esquecer do quanto o fizera sofrer. No best-seller, porém, não foram revelados detalhes cruciais, como no documentário da Netflix.
O diretor revelou que levou cerca de 3 anos apenas conhecendo os dois homens antes de iniciar o processo de filmagem, principalmente porque eles demoraram para acreditar nele e na visão que poderia dar para toda a história. “Conseguimos passar muito tempo apenas construindo uma relação de confiança, e isso foi muito útil para criar um ambiente em que eles sentissem que poderiam ter conversas de uma forma que não tinham antes. Foi uma verdadeira jornada. Houve várias vezes em que Alex e Marcus desistiram do projeto”.
Se tivesse a oportunidade de poupar uma pessoa que ama de alguma memória trágica de algo que ela sofrera, você o faria? Até que ponto essa atitude ultrapassa o amor e pode alcançar a manipulação?