Artes/cultura
08/04/2023 às 11:00•3 min de leitura
O Pessach, ou Páscoa judaica, é uma das celebrações mais importantes do judaísmo, durando oito dias e comemorando a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, conforme relatado na Bíblia. Em sua primeira noite é realizado o Seder, jantar considerado o ponto alto dessa festividade, no qual são feitas orações e consumidos alimentos simbólicos que representam aspectos da história bíblica.
Porém, durante as décadas de 1920 e 1930, os judeus que viviam na União Soviética viram uma mudança radical nas tradições desse evento religioso, que passou a ser utilizado como uma ferramenta para promover o comunismo.
(Fonte: Getty Images)
Em 1920, os membros desse grupo étnico na região ainda estavam se recuperando dos resultados da Guerra Civil Russa, e desejando uma vida mais segura, muitos passaram a se aliar ao Partido Comunista, pois viram no Exército Vermelho o lado menos violento e mais protetor durante o período de confronto.
Porém, de acordo com a professora Anna Shternshis, autora de Soviético e Kosher: A Cultura Popular Judaica na União Soviética (2006), por mais que os bolcheviques fossem oficialmente contra o antissemitismo, isso não significava que apoiassem qualquer tipo de religião.
Então, embora o governo aprovasse a literatura e o teatro iídiche, assim como escolas judaicas, também realizava uma grande campanha para que a estrutura religiosa em si fosse abandonada e substituída por uma identidade mais secular.
Parte de um panfleto satírico da Páscoa Vermelha. (Fonte: Anna Shternshis/Gastro Obscura/Reprodução)
O Peassach e o Seder não tinham espaço no novo estilo de vida que estava sendo propagado, o que fez com que a seção judaica do Partido Comunista instruísse suas filiais a organizarem a “Páscoa vermelha” em 1921, uma versão satírica da comemoração como uma forma de educação política, na qual Deus era substituído pela Revolução Russa e a libertação seria do capitalismo.
A versão comunista da festividade passou a ser realizada em todo país, principalmente por artistas, autores e atores que queriam transformar seus camaradas judeus praticantes em empenhados bolcheviques. O foco ficava nos membros mais jovens da comunidade, que normalmente levavam vidas soviéticas seculares em público, mas seguiam as tradições religiosas dentro do lar.
Por mais que seja difícil saber os detalhes exatos dessas celebrações, algumas publicações da época e entrevistas com judeus da antiga União Soviética ajudam a entender um pouco da situação, que envolvia até mesmo o ato blasfemo de distribuir pão durante o feriado – uma comida que era evitada durante esses oito dias em honra aos ancestrais – que não tiveram tempo de deixar o alimento crescer quando fugiram do Egito.
Capa de uma Hagadá satírica. (Fonte: Anna Shternshis/Gastro Obscura/Reprodução)
Até mesmo a Hagadá, livro religioso com uma coleção de histórias, canções, orações e rituais que contam a jornada do Êxodo do Egito, não escapou. Lido durante o Seder, a obra ganhou sátiras próprias na forma de panfletos e suplementos para jornais iídiches, parodiando os costumes como uma forma de zombar do judaísmo e promover os ideais do partido.
“Lavem toda a lama burguesa, lavem o mofo de gerações e não digam uma bênção, digam uma maldição”, afirmava a Hagadá para Crentes e Ateus, publicada em 1923, trazendo uma modificação herética do ritual sagrado de lavar as mãos antes do importante jantar da Páscoa.
Enquanto as publicações originais dessa obra religiosa incluem a frase “Fomos escravos do faraó no Egito, e Adonai, nosso Deus, nos tirou de lá com mão forte e braço estendido”, a versão soviética exaltava a revolução bolchevique: “Éramos escravos do capital até que outubro chegou e nos conduziu para fora da terra da exploração com mão forte e, se não fosse outubro, nós e nossos filhos ainda seriam escravos”.
(Fonte: Getty Images/Reprodução)
A partir de 1930, os esforços para enraizar nos judeus soviéticos uma cultura secular generalizada foram tão eficazes que o Partido Comunista fechou sua sessão e escolas judaicas, abandonando nesse processo os esforços da Páscoa vermelha. “Eles decidiram naquela época que o projeto de sovietização dos judeus soviéticos estava concluído e não precisavam de mais eventos assim”, explicou Shternshis.
Dez anos depois, a onda feroz de antissemitismo liderada por Stalin atacou ainda mais essa cultura, empurrando ela para as margens da sociedade e levando à diáspora desse grupo étnico da União Soviética.
Porém, o impacto dos Seders comunistas e outros projetos similares perdura até hoje. Uma pesquisa realizada em 2020 com aqueles que estavam no país nesse período apontou que muitos deles viam a língua, a ancestralidade e o Estado de Israel como partes essenciais de suas identidades judaicas, mas sem dar uma importância real para a religião em si.
Seja como for, o Pessach está chegando, e enquanto os membros dessa comunidade irão considerar celebrá-lo ou não, uma grande certeza é que poucos, ou quase nenhum, irão optar pela versão comunista, agradecendo fervorosamente a revolução que veio para libertá-los das algemas do capitalismo.