Ciência
20/02/2023 às 12:00•2 min de leitura
Por muitos séculos, o cuidado com os dentes era tanto uma preocupação quanto um privilégio. Antes do desenvolvimento das próteses modernas e dos aparelhos ortodônticos, ter um sorriso perfeito era, principalmente, uma questão de genética e sorte.
Apesar disso, para quem tinha condições de utilizar os serviços de um dentista, poderia compensar alguns problemas. Foi o que Anne d'Alègre precisou fazer para não perder seu status social. A aristocrata francesa utilizou diversos recursos, como prender os dentes com fio de ouro, para manter seu sorriso — mas acabou deixando sua situação dentária pior.
Retrato de Anne d’Alégre. (Fonte: Journal of Archaeological Science/Reprodução)
Anne d'Alègre nasceu por volta de 1565 em uma família protestante que vivia em um reino dominado pelos católicos. Toda a sua infância, e parte da sua vida adulta, aconteceu durante as Guerras Religiosas Francesas — oito guerras civis que ocorreram entre 1562 e 1598. Muito nova, ela se casou com Paul de Coligny, um conde francês que faleceu quando Anne tinha apenas 21 anos.
Viúva e com um filho pequeno para cuidar, ela ainda teve todas as suas propriedades confiscadas pelo rei católico Henrique III. No meio desse caos, ela decidiu se casar com Guillaume IV d'Hautemer, governador da Normandia e 30 anos mais velho que ela. O casamento durou 14 anos, e durante esse período ela viu o filho se converter ao catolicismo, embarcar em uma cruzada religiosa e morrer aos 20 anos em sua primeira experiência em batalha.
Anne já sofria de uma doença que inflama a gengiva e o osso ao redor dos dentes — fazendo com que, às vezes, eles se afrouxassem ou caíssem. Esse problema, somado à série de perdas na sua vida, possivelmente fez com que ela enfrentasse momentos de muito estresse, resultando em um ranger de dentes. Um estudo recente indica que, em algum momento da sua vida, ela teve um dente substituído por um artificial feito de marfim de elefante. E assim começou sua obsessão com o seu sorriso.
Crânio de Anne d’Alégre. (Fonte: Journal of Archaeological Science/Reprodução)
Para tentar preservar o seu sorriso, a nobre enrolou fios de ouro ao redor dos seus dentes, inclusive da prótese de marfim. Embora isso tenha mantido seu sorriso, deixou a situação dentária ainda pior. Nos anos seguintes, ela precisou apertar constantemente o fio, desestabilizando os dentes ao seu redor.
A escolha por manter o sorriso, prejudicando a situação dos dentes, pode ser explicada por pressão estética, muito comum na época em que Anne viveu. Durante o século XVII, uma mulher viúva de dois casamentos tinha muito a perder. A beleza era associada a bom caráter e saúde, e perder os dentes — ou ter um sorriso torto — faria com que ela perdesse seu status.
Nessa situação, a aristocrata pode ter usado sua prótese dentária apenas para manter uma certa posição social. E como ela possuía muitos detratores e sua reputação não era muito boa, Anne vivia sob uma série de riscos para alguém que pretendia se manter na nobreza.
Ela era uma socialite elegante e preocupada com seu status. Era comum ser vista andando de carruagem e gostava de pregar aos domingos. Em uma sociedade patriarcal, governada em parte pela aparência, Anne poderia perder tudo isso apenas por não ter um sorriso agradável.
Segundo o cirurgião-barbeiro francês Ambroise Paré — que serviu na corte real durante a vida de Anne —, se um paciente “está desdentado e desfigurado, sua fala também se torna depravada”. O estudo que apontou as motivações da aristocrata com a aparência do seu sorriso concluiu dizendo que “foi essencial para Anne d’Alègre reconstruir sua aparência com a colocação de uma prótese, apesar das consequências devastadoras”.
Anne morreu por doença em 1619, por volta dos 54 anos.