Estilo de vida
23/02/2024 às 13:00•4 min de leitura
Em 1975, o autor James Clavell publicou o livro Shogun e fez um tremendo sucesso. Lançado no Brasil como Xógum - A Gloriosa Saga do Japão, a história narra a trajetória de John Blackthorne, um navegador inglês cuja embarcação naufragou na costa do Japão, levando a uma série de acontecimentos renderam a Blackthorne o título de samurai a serviço do xogunato.
O que muita gente não sabe é que a trama escrita por Clavell, que chega no fim deste mês à Disney+ em formato de minissérie, foi inspirada na história de William Adams, o primeiro inglês a chegar ao Japão. Após ganhar a confiança dos governantes locais, ele foi rebatizado e ganhou a confiança do famoso Ieyasu Tokugawa.
Nascido em 1954 na cidade de Gillingham, em Kent, na Inglaterra, o jovem William Adams trabalhou desde os 12 anos como aprendiz do mestre da construção de embarcações Nicholas Diggins. Além de construir barcos, Adams aprendeu com seu mestre a navegar em mar aberto, a ler as estrelas e, ainda, absorveu conhecimentos de matemática.
Em 1588, aos 24 anos, já como membro da Marinha inglesa, o rapaz participou de sua primeira guerra em uma batalha contra a Armada Espanhola. Ele comandou um navio de provisões no auxílio às embarcações que combatiam a frota espanhola, que buscava derrubar a Rainha Elizabeth I.
Uma década mais tarde, mesmo já possuindo status, riquezas e uma família com dois filhos, Adams simpatizava com os ideais dos holandeses, que visavam quebrar a dominação marítima de Portugal e Espanha, as maiores potências navais da época.
Gravura do século XVII mostra as cinco embarcações lideradas por William Adams. (Fonte: Zacharias Heijins/Reprodução)
O plano era relativamente simples: Adams deveria navegar até a América do Sul em busca de riquezas e, caso o plano falhasse, devia seguir para o Japão para obter prata e trocar por especiarias no território hoje conhecido como Indonésia. Após partir de Roterdã com sua frota composta por cinco navios, as coisas começaram a desandar.
O encontro com os nativos na América do Sul nem sempre foi dos melhores, com episódios de combate em diferentes pontos onde os navios protestantes atracaram. Foi então que decidiram optar pelo plano B e seguir para o Japão.
Mas a empreitada não foi fácil: com a maior parte da tripulação morta no trajeto e com os sobreviventes muito debilitados, o grupo de Adams quase foi morto pelos japoneses ao chegar à ilha de Kyushu. Embora tenham sido cordiais com os locais, a chegada de um grupo de samurais acompanhados de um padre jesuíta quase pôs um fim à vida da já enfraquecida tripulação protestante.
William Adams, de chapéu e camisa azuis, em sua chegada à ilha de Kyushu. (Fonte: Kuroshima Island Memorial Park/Reprodução)
A rivalidade entre os jesuítas e os protestantes quase custou a vida de William Adams e seus companheiros, quando o padre acusou os ingleses de serem piratas. Porém, em vez disso, o navegador inglês foi tomado como prisioneiro por Ieyasu Tokugawa, que na época ainda era apenas um senhor feudal. Com a ajuda de um padre como tradutor, Tokugawa interrogou Adams e foi cada vez mais se interessando pelo inglês.
Seus conhecimentos de matemática, construção de barcos e navegação atraíram a atenção do lorde japonês. Foi então que William Adams deixou de ser prisioneiro e passou a trabalhar sob as ordens de Tokugawa para criar os primeiros navios japoneses ao estilo europeu.
Seu desejo de retornar à sua terra natal foi constantemente negado, já que Adams se tornou um importante recurso para o xogunato. Porém, isto não o impedia de trocar cartas com sua esposa, que permanecia na Inglaterra. Após aprender a falar japonês, o inglês substituiu o padre português João Rodrigues como intérprete oficial e conselheiro do agora Xogum Ieyasu Tokugawa.
Pintura retrata um dos encontros de William Adams com Ieyasu Tokugawa. (Fonte: Pieter van der Aa/Reprodução)
Adams foi responsável por escrever cartas em nome de Tokugawa e também pelo fortalecimento das relações comerciais entre o Japão e países estrangeiros, como Inglaterra e Holanda. Durante este período, Adams se casou com Oyuki, filha adotiva do oficial Magome Kageyu, com quem teve dois filhos: Joseph e Susanna Adams.
Sua proximidade do governante lhe rendeu ainda mais status: Tokugawa presenteou o navegador com uma luxuosa casa com diversos servos na península de Miura, além de dar ao inglês duas katanas, as tradicionais espadas japonesas. Ali, o Xogum declarou a morte de William Adams e, em seu lugar, nascia o samurai Miura Anjin (algo como "o navegador de Miura").
Além disso, Adams, o primeiro samurai inglês, recebeu o título de jikatatori hatamoto, japonês para "portador da bandeira". Este era um dos mais altos postos do xogunato e representava o valor e respeito de Tokugawa em relação ao estrangeiro.
Memorial em homenagem a Muira Anjin e sua esposa no templo Jodo-ji, na cidade japonesa de Yokosuka. (Fonte: Takaaki Ota/Reprodução)
Miura Anjin teve papel importante na expulsão dos católicos e cristãos do Japão. Embora o próprio Xogum não gostasse tanto dos religiosos estrangeiros pregando em seu território, a influência de Adams, inglês e protestante, foi crucial quando Tokugawa decidiu se livrar da presença os padres e seus seguidores.
O navegador inglês também teve papel fundamental na criação de rotas de comércio entre o Japão e outros países do sul asiático. Porém, após a morte de Ieyasu Tokugawa, seu sucessor cancelou a maioria dos acordos comerciais, mantendo negócios apenas com os holandeses.
Em maio de 1620, William Adams — ou Miura Anjin — adoeceu e morreu aos 55 anos em Hirado, Nagasaji, e foi sepultado próximo ao memorial local em homenagem a São Francisco Xavier. Em seu testamento, Adams, o primeiro inglês a se tornar um samurai, pediu que seus bens fossem divididos igualmente entre suas famílias da Inglaterra e do Japão.