Ciência
03/02/2018 às 03:00•4 min de leitura
Bem, ao ler o título acima, é praticamente impossível não criar uma imagem supernegativa de Clemente V, o Papa “responsável” pela extinção da Ordem dos Cavaleiros Templários. No entanto, apesar de ser fácil imaginá-lo como um tirano sanguinário e maluco, a verdade é que esse pontífice não passou de um fantoche manipulável nas mãos de um rei ganancioso.
Clemente V — ou Raymond Bertrand de Got, como era o seu nome de batismo — nasceu em Villandraut, na França, em 1264, e sua trajetória está intimamente ligada à do Rei Filipe IV da França, também conhecido como “Filipe, o Belo”. Portanto, que tal começar com a história do bonito para você entender como é que esses dois acabaram se envolvendo?
Filipe, o Belo (belo?)
Filipe passou as primeiras décadas de seu reinado gastando todo o dinheiro que podia para embelezar a corte e em guerras contra os ingleses. No início do século 14, a grana começou a ficar curta, e o rei adotou várias medidas para tentar reestabelecer os cofres da coroa, como desvalorizar a moeda, expulsar os judeus da França e se apossar de suas economias, e confiscar os bens de banqueiros italianos e abades ricos — medida que deu início a uma bela briga com o Papa da época, Bonifácio VIII.
Mas, como nada disso estava trazendo os resultados esperados, Filipe teve a brilhante ideia cobrar impostos sobre metade do rendimento anual do clero — e imagine como o pessoal de Roma recebeu essa notícia! Pois, como esperado, isso gerou uma baita confusão, e os cardeais inclusive chegaram a tramar a derrubada do monarca francês. Além disso, alianças perigosas começaram a se formar entre a Igreja e os vários grupos rivais ao Rei na França.
No entanto, o bonito também era esperto e, além de comandar uma tentativa de depor o Papa, ele começou a buscar um substituto que fosse facilmente manipulável — e é aqui que Clemente V entra em cena. Raymond pertencia a uma família nobre e o que ele gostava mesmo de fazer era produzir vinho e apreciar obras de arte. Mas, como era de costume entre os abastados da época, ele adquiriu um bispado e entrou para a Igreja para se ocupar.
Depois de um tempo, o próprio Papa Bonifácio VIII “promoveu” Raymond ao posto de cardeal — provavelmente com o objetivo de ganhar um aliado e dar uma freada na crescente influência dos cardeais franceses —, e isso não foi uma boa ideia. Bonifácio morreu em 1303, e Filipe, que desejava se livrar do poder da Igreja, começou a se intrometer no conclave e tentar a influenciar a escolha do novo pontífice.
Em um primeiro momento, os cardeais resistiram à pressão e elegeram Bento XI como Papa. Contudo, o pontífice foi envenenado alguns meses após assumir o posto, criando o maior clima em Roma. Para piorar, Filipe aproveitou o momento de instabilidade para forçar uma ruptura entre os cardeais italianos e franceses, resultando na interrupção dos trâmites para uma nova eleição papal por quase um ano.
E quando o conclave finalmente aconteceu, Raymond — a “marionete” de Filipe — foi o escolhido graças às tramoias do rei. O novo Papa escolheu o nome Clemente V, e começou bem o pontifício, se recusando a ir até Roma para ser coroado e insistindo que a cerimônia fosse realizada na França. Depois, ele ainda transferiu a corte papal para Avignon e, depois que assumiu o posto, a coisa só piorou...
Palácio Papal de Avignon, na França
Uma de suas primeiras medidas como Papa foi nomear nove novos cardeais — todos amiguinhos do rei — para que a facção francesa se tornasse bem mais numerosa do que a italiana. Depois, o monarca fez que Clemente V revisasse a Clericis Laicos, uma bula criada por Bonifácio VIII que proibia qualquer governante laico de cobrar impostos do clero, livrando Filipe do veto.
Além disso, Filipe levou Clemente a anular outra bula criada por Bonifácio, a Unam Sanctam, que definia a autoridade suprema da Igreja. E não satisfeito com todas essas concessões, Filipe ainda forçou o Papa a declarar que Bonifácio VIII havia sido um herege e usurpador. A Igreja evidentemente reagiu, e uma revolta teve início em Veneza, obrigando o rei francês a se endividar ainda mais para conter os ânimos.
Como mencionamos anteriormente, Filipe IV era bem criativo na hora de arrecadar dinheiro. Pois, desta vez, ele voltou sua atenção para a Ordem de Malta (ou Cavaleiros Hospitalários) e a Ordem dos Templários que, como você sabe, foram fundadas durante as Cruzadas para defender os cristãos na Terra Santa.
Acontece que depois que os muçulmanos conquistaram a Palestina, as duas organizações — que haviam se tornado extremamente ricas graças às doações que receberam ao longo dos anos e ao comércio de relíquias — acabaram retornando para a Europa. Filipe, por sua vez, viu nelas uma mina de ouro, e usou Clemente para conseguir o que queria.
Assim, graças às falcatruas do rei, Clemente V intimou os líderes das duas ordens para responder a uma lista de acusações, que incluíam ofensas como blasfêmia, a prática do paganismo, cuspir na cruz, negar Cristo etc. Jacques de Molay, o grão-mestre Templário foi o primeiro a se apresentar, seguido de Foulques de Villaret, grão-mestre Hospitalário.
Villaret foi mais esperto, e logo se ligou que o Papa estava, na verdade, tentando arrancar dinheiro dele com as acusações. Então, ele desembolsou uma fortuna como propina e ainda acusou de Moley de comandar uma ordem satânica. O grão-mestre dos Templários, por outro lado, em vez de ceder também e se vender, optou por manter a integridade e se declarou inocente.
Pois, conforme já contamos em uma matéria aqui do Mega Curioso sobre Jacques de Molay — que você pode acessar através deste link —, a relutância do grão-mestre dos Templários acabou dando origem a uma verdadeira guerra contra a ordem. No fim, a organização foi extinta, quase todos os membros foram capturados e muitos foram queimados na fogueira como hereges, incluindo o coitado do de Molay.
Filipe IV — que deveria ter ficado conhecido como “o Picareta” em vez de “o Belo” — conseguiu o dinheiro que queria, e Clemente V, o “pau-mandado”, conseguiu desestabilizar o poder da Igreja, e abrir precedente para que muitos outros reis europeus conquistassem a independência da suprema autoridade papal.
Além disso, as ações de Clemente V — arquitetadas por Filipe IV —, deram origem a uma sucessão de seis padres franceses como chefes supremos da Igreja. O rei da França morreu cerca de um ano depois da execução de de Moley, assim com o Papa, que faleceu enquanto dormia tranquilamente em seu palácio de Avignon.
Mas não se preocupe, pois o grão-mestre templário lançou uma maldição sinistra contra os dois antes de ir para a fogueira, e Dante Alighieri fez questão de colocar o Papa Clemente V em um dos círculos do inferno que ele descreve em sua Divina Comédia.
*Publicado em 8/7/2015