Ciência
28/10/2019 às 15:00•4 min de leitura
O arquiteto Benjamin Marshall o adjetivou como o mais seguro, o mais luxuoso, o maior e o mais tecnológico teatro moderno já feito, além do principal título que encabeçava as manchetes de todos os jornais de Chicago e dos Estados Unidos: “absolutamente à prova de fogo”. Seis anos depois, Alexander Carlisle e Thomas Andrews repetiriam essas mesmas palavras para o mundo sobre a criação do Titanic, só que substituindo o título das manchetes por “inafundável”.
E, ainda assim, contrariando as próprias probabilidades e as convicções de seus criadores, isso não impossibilitou que o maior navio de passageiros já construído levasse 1.523 pessoas às profundezas do Atlântico Norte, ou tampouco que o Teatro Iroquois ceifasse as vidas de 602 pessoas apenas um mês após sua inauguração no que se tornaria um dos mais mortais incêndios da história teatral e dos Estados Unidos.
Entretanto, muito diferente do Titanic, a tragédia do Teatro Iroquois foi uma sucessão de erros, esquemas e negligências.
Naquela quarta-feira do dia 30 de dezembro de 1903, as ruas de Illinois, em Chicago, estavam repletas de pessoas que queriam aproveitar o início da tarde de feriado. O vento rigoroso e a neve que caía não impediram que uma multidão se aglomerasse à entrada do recém-inaugurado Teatro Iroquois, que ficava entre as ruas Dearborn e Randolph. Todos estavam ali para assistir à sessão matinê do musical “Mr. Bluebeard”, cujos ingressos já estavam esgotados para todos os 1.600 lugares da casa.
Os funcionários negligenciaram a superlotação e cerca de 400 espectadores acima da capacidade permitida, espalharam cadeiras extras nas áreas comuns, bloquearam corredores da plateia principal e das galerias que levavam às entradas e saídas do auditório. E pretendendo impedir que penetras que pagaram por lugares mais baratos chegassem a outros setores, os funcionários colocaram cordões de ferro nas soleiras e nos topos de todas as escadas.
Quando a cortina se ergueu para dar início à sessão matinê do primeiro ato do espetáculo, o teatro estava lotado com mais de 2 mil espectadores. Eles eram em sua maioria mulheres e crianças que haviam vindo do Centro Oeste para aproveitar um dia de compras e desfrutar do novo empreendimento que era o Iroquois — que tentava se igualar à qualquer outro teatro da Broadway.
Muito embora Benjamin Marshall tivesse dito que havia estudado todos os casos de desastres na história do teatro mundial para evitar qualquer tipo de acidente, ele acabou cometendo erros e passou por cima de exigências básicas para uma construção daquela magnitude e que foram previstas logo depois do Grande Incêndio de Chicago, tudo visando entregar o projeto que já havia excedido o prazo das obras.
Havia apenas uma entrada principal no teatro que conectava o foyer, as escadarias de mármore, todos os acessos para a plateia inferior, para o box, camarotes, balcões e mezaninos, ignorando dessa forma o fato de que as escadas e saídas precisavam ser separadas. Em caso de emergência, o resultado seria uma aglomeração de 1.600 pessoas tentando atravessar uma única saída, caso não ficassem presas nas quantidades excessivas de portas que só levavam de um ambiente a outro e não diretamente para a rua.
E como se não bastasse esse erro fatal, as proporções nos bastidores eram extremamente grandes. Os camarins ficavam em cinco subsolos diferentes e era necessário um elevador para carregar os atores e outros membros da equipe até o nível do palco. As portas francesas das saídas de incêndio eram de correr e muito complicadas de serem abertas. Também não haviam alarmes de incêndio, assim como sprinklers e telefones nos bastidores.
Na época, um capitão do Departamento de Bombeiros de Chicago afirmou ter apontado todos esses e outros erros mais para um dos bombeiros do teatro, mas esse respondeu apenas que nada poderia ser feito, uma vez que qualquer reclamação era dispensada pela administração.
O Iroquois era uma armadilha de fogo prestes a desarmar.
Por volta das 15h13, nos minutos iniciais do segundo ato do musical, enquanto o elenco cantava "Pale Moonlight”, o único holofote ligado que dava o ar enluarado à atmosfera pipocou e soltou faíscas que começaram a queimar as cortinas próximo às varas de sustentação. O pequeno incêndio rapidamente se espalhou de um lado para o outro, sobre todo o sistema superior das cortinas, como se houvesse um rastro de pólvora.
Por um momento, ninguém se moveu imaginando que se tratava de algum efeito especial, porém quando os espectadores mais próximos perceberam o cheiro de queimado e pequenos pedaços de tecido chamuscados caindo no fosso da orquestra, eles começaram a se levantar e se anteciparem até às saídas.
O bombeiro da brigada de incêndio do teatro gritou para que descessem a inovadora cortina corta-fogo feito de amianto, mas de alguma forma havia ficado presa. Ele também pediu para que acionassem o alarme de incêndio dos bastidores, mas não havia nenhum. De repente, todos os piores pesadelos pareciam estar acontecendo.
Os músicos, então, pararam de tocar e, no instante em que os atores em cena se dispersaram e o protagonista Eddie Foy seguiu até a beirada do palco para pedir calma a todos e informar que o incêndio estava sendo controlado, toneladas de cenário em chamas ruíram sobre o piso do palco, imediatamente instaurando o que seriam 17 minutos de puro terror antes do evento fatal.
Todos os atores conseguiram rapidamente fugir pela única porta traseira que dava acesso aos fundos do teatro, com exceção da bailarina Nellie Reed, que ficou presa numa lua sobre o palco e despencou de dezesseis metros de altura, morrendo ao ser resgatada.
Um destino parecido ao da garota aguardava as mais de 2 mil pessoas que tentavam às pressas escapar da caixa de fumaça e chamas que aos poucos o auditório se tornava. Na escuridão, eles seguiram para as saídas, mas nem todos sabiam onde ficavam porque não havia indicações sobre as portas. Quando conseguiam ultrapassá-las, se deparavam com cordões de isolamento e portas trancadas que não levavam a lugar algum ou que só eram abertas por fora. A maioria das escadas de incêndio eram becos sem saídas, pois não haviam sido finalizadas na correria de inaugurar o espaço de vez. Eles não tinham para onde ir e o pior veio em seguida.
O ar congelante que entrava pelas portas do fundo do palco misturado com o ar superaquecido do interior e das cortinas — que, na verdade, eram feitas de um tecido mais barato e facilmente inflável ao invés de amianto —, causaram uma explosão a partir da boca do palco que consumiu todo o auditório feito uma bomba. E em apenas dez minutos, o Iroquois incinerou centenas de pessoas instantaneamente e aprisionou outras em um inferno de chamas.
Então, às 15h30, as pessoas que não pereceram pelo fogo da explosão morreram pisoteadas pelas outras ou sucumbiram à fumaça altamente tóxica por toda a parte. Quando as labaredas cessaram, mães foram encontradas abraçadas aos seus filhos em meio aos escombros, crianças e adultos pendurados, desmembrados ou amontoadas diante de portas que não se abriam.
Naquela tarde de 30 de dezembro, o incêndio do Teatro Iroquois matou 602 pessoas, causando uma pilha de corpos com altura de cerca de dez metros no beco ao lado do teatro. Estima-se que por volta de 350 pessoas ficaram gravemente feridas.
Depois da tragédia, o governo ordenou que todos os teatros fossem fechados em Chicago e passassem por uma inspeção rigorosa. Leis foram criadas baseadas nos erros cometidos no Iroquois, como a invenção de portas com barras antipânico, saídas diretas do público para a rua, assim como duas ou mais exclusivas para cada setor do teatro.
Embora prefeitos, empresários e arquitetos tenham sido declaradamente culpados com todas as provas que haviam, nenhum deles pagaram pelas vidas ceifadas dentro do Iroquois. E mesmo depois de o prédio ter sido demolido em 1925 e ter recebido em seu lugar a construção do Teatro Oriental, o sentimento de injustiça prevaleceu como uma mancha: queimada e feia.