Ciência
06/02/2020 às 14:00•6 min de leitura
Dezesseis anos antes do sequestro de Amber Hagerman dar origem ao Alerta Amber, o governo dos Estados Unidos criou um método nacional para divulgação de casos de crianças desaparecidas. O Conselho Nacional de Segurança Infantil deu o nome de “Programa de Embalagem de Leite para Crianças Desaparecidas”, que consistia em imprimir fotos delas em caixas para que as pessoas tivessem conhecimento de quem as autoridades estavam procurando e, com isso, pudessem reportar alguma informação caso tivessem pistas.
John David Gosch, mais conhecido como Johnny Gosch, foi o primeiro a ter o seu rosto estampado nas embalagens do produto. Ele poderia ser só mais um caso de desaparecimento bizarro entre milhares, mas as migalhas de sua trajetória ao longo do caminho se tornaram o melhor sinônimo de mistério.
Nascido no dia 12 de novembro de 1969, em West Des Moines, em Iowa, Johnny Gosch sempre perguntava aos pais se poderia começar a entregar jornal. Esse desejo do garoto surgiu por volta de seus 12 anos, quando ele queria juntar dinheiro suficiente para comprar uma bicicleta nova.
A princípio, os pais relutaram um pouco, porém acabaram cedendo assim que entraram em um consenso de que Johnny poderia se fosse apenas acompanhado de um deles. E foi exatamente como aconteceu ao longo dos meses: ele fazia com o pai, Leonard Gosch, e com a mãe, Noreen Gosch, o mesmo trajeto diariamente. Eram eles, o cachorro e os outros garotos jornaleiros.
No dia 3 de setembro de 1982, sexta-feira, a família se reuniu na arquibancada da quadra do colégio do filho mais velho para assistir ao seu jogo de futebol. Em certo momento, durante a partida, Johnny Gosch quis comer alguma coisa, então Leonard lhe deu alguns trocados para que ele fosse até a cantina.
Passaram-se alguns minutos e nada do garoto voltar. Intrigado, Leonard foi procurar pelo filho e o encontrou embaixo das arquibancadas, conversando com um policial. Leonard se lembra apenas de ter cumprimentado o homem e feito um gesto a Johnny para que voltasse com ele.
A presença de um patrulhamento policial em eventos esportivos era algo comum nas escolas norte-americanas, por isso, para a maioria das pessoas, ver uma criança conversando com um policial era algo tão corriqueiro que em nada parecia estranho ou perigoso, muito pelo contrário. Johnny chegou a sair do jogo dizendo que talvez fosse legal se tornar um policial quando crescesse. Leonard e Noreen Gosch não tinham como suspeitar de nada na época nem prever o que estava por vir.
Bem cedinho, na ensolarada manhã do dia 5 de setembro de 1982, domingo, os garotos arrumavam em seus carrinhos de madeira as pilhas de jornais que seriam distribuídos para a vizinhança. Na noite anterior, Johnny Gosch havia recebido um não dos pais quando indagou se poderia seguir sozinho em sua rotina de distribuição do jornal no dia seguinte.
Às 7h, alguns vizinhos telefonaram para a casa de Johnny para reclamar que ainda não haviam recebido o jornal, já estava 2 horas atrasado em relação ao horário comum. De início, os pais imaginaram que o garoto só estivesse dormindo além da conta, mas descobriram que não tinha sido isso quando encontraram a cama vazia. Leonard foi quem saiu desesperado à procura do filho, refazendo a habitual rota.
A dois quarteirões da casa, o homem encontrou o carrinho abandonado do filho, ainda entupido com os jornais não entregues. Nada tinha sido mexido. Não havia sinais de luta ou de uma aparente perseguição, não que envolvesse o objeto. A polícia usou esse fato para excluir declarações de possíveis testemunhas, uma vez que nada remetia a um crime. Outro fator importante é que o cachorro de Johnny acabou voltando para casa sozinho.
Segundo a sua mãe, o menino não preenchia o perfil de criança que foge de casa, tampouco que abandona o próprio cachorro no meio do caminho. Atencioso e responsável, ele nunca havia desobedecido as regras a que era submetido, e seus resmungos de criança contrariada não duravam mais do que algumas horas.
A polícia demorou 45 minutos para atender à ocorrência, embora o departamento de polícia ficasse a cerca de 10 quarteirões de distância da casa. Os pais mal sabiam que esse era apenas o primeiro indício de uma verdadeira cruzada de negligência que enfrentariam.
Os vizinhos foram as primeiras pessoas de quem Leonard e Noreen buscaram um testemunho. Vários deles afirmaram ter visto o mesmo carro, um Ford Fairmont azul, parado no meio-fio e, nele, havia um homem que conversava com Johnny. Um vizinho chamado John Rossi, advogado aposentado, disse que o garoto dava instruções ao motorista. Inclusive, Johnny teria perguntado para Rossi se ele poderia ajudá-lo com as direções, e foi nesse momento que o homem engatou a ré no carro e saiu acelerando sem ao menos respeitar uma placa de pare.
No entanto, a declaração de Rossi não se emendou exatamente com a parte do depoimento que os pais colheram dos garotos entregadores. Mike, um jovem de 16 anos que acompanhava Johnny – e que não foi mencionado por Rossi, assim como os outros garotos que estavam com ele –, disse que o desconhecido no carro azul de fato parou para pedir informações, só que ele chegou a desligar o motor, abrir a porta e pôr o pé na calçada. Johnny se afastou do carro imediatamente e foi embora, pois disse ter se assustado com o cara. O homem, naquele momento, teria piscado a luz do teto do carro três vezes, o que poderia indicar algum sinal para alguém. Em adição a isso, uma testemunha ocular, em depoimento, afirmou que viu um homem a pé, espreitando-o a duas casas de distância de onde o carro havia estacionado. O automóvel partiu logo que Johnny Gosch foi embora. A principal conclusão é que o garoto tenha sido arrastado para dentro do carro pelo homem a pé, confirmando a suspeita palpável de um sequestro.
Em 1982, de acordo com o tenente Jeff Miller, a polícia havia começado a caça pelo garoto imediatamente, porém não foi muito bem o que aconteceu. O menino deixava jornais no quintal das pessoas há 1 ano, seguindo uma rotina diária, acompanhado pelos pais, e a resposta ao seu desaparecimento foi um silêncio retumbante de indiferença por parte do Departamento de Polícia de West Des Moines.
A primeira fala que os pais ouviram foi: “Tenho certeza de que ele aparecerá por conta própria”. Além disso, demoraram semanas para realizar buscas no local do desaparecimento do garoto. Segundo Noreen, era como se eles não quisessem se envolver de tão lenta e preguiçosa que era a investigação.
O chefe de polícia não permitiu que pôsteres fossem espalhados nos principais locais de busca, principalmente nas delegacias, e chamou Johnny de “um bobo fugitivo” em meio a vários voluntários que haviam se reunido para procurá-lo. Os policiais ainda recusaram ajuda dos municípios vizinhos e rejeitaram suporte aéreo, cães farejadores e mão de obra voluntária que não fosse autorizada por lei. O FBI se negou a colocar as mãos no caso.
Todo o esforço e a campanha nacional partiram da família Gosch, com pouca, e às vezes quase nenhuma, assistência da polícia, sendo obrigada a contratar um detetive particular para tentar esclarecer o mistério que a polícia não queria investigar.
Dois anos depois, um homem chamado Paul Bonacci surgiu à porta da casa dos Gosch e alegou que conhecia o filho deles. Em lágrimas, ele disse que era o motorista do carro azul e que tinha sido forçado a ajudar na operação, uma vez que fazia parte de um esquema de tráfico de crianças e pedofilia, no qual todas as vítimas eram marcadas, atrás da orelha, com um símbolo “X” sobre um semicírculo. Embora aquele homem não fosse parecido com o do perfil descrito pelas crianças, um fator determinante fez Noreen acreditar nele: a descrição de uma marca de nascença que o filho tinha no peito, dentre outras informações não divulgadas por ela para a mídia.
Paul Bonacci era fichado por molestação, mas nunca foi considerado uma testemunha credível pelas autoridades. Muitos acreditam que ele era um impostor pago pelo detetive particular da família a fim de que eles mantivessem as buscas pela criança, ou seja, continuassem gastando dinheiro. Paul nunca revelou nenhuma informação do suposto sequestro e sumiu logo depois.
Quinze anos depois do ocorrido, Noreen Gosch – já divorciada – acordou com batidas na porta às 2h30 da madrugada. O homem do lado de fora apenas abriu a camiseta e mostrou uma marca de nascença no peito, mas, antes disso, pelos traços do rosto, a mãe disse ter reconhecido o seu Johnny.
Com 27 anos, ele estava acompanhado por outro homem e confessou que ainda estava em perigo e sob a tutela de quem o havia sequestrado ainda pequeno. Sem responder a nenhuma das perguntas clichês da mãe, Johnny teria mostrado a marca do “X” confirmando a fala de Paul sobre o esquema de tráfico, ressaltando que nomes importantes da polícia estavam envolvidos na época, o que poderia justificar a lentidão do processo. Em seguida, ele foi embora.
Noreen foi ao FBI e fez um retrato falado de seu filho, mas a falta de provas e a atestada obsessão dela pela procura do filho, que havia destruído o seu casamento e a deixado psicologicamente instável, estavam contra ela. No entanto, eles não descartaram a possibilidade de que ela estivesse certa sobre o esquema de pedofilia. E como uma espécie de estranha reviravolta ou insólita coincidência, em 2013, em uma operação massiva, o FBI resgatou 105 crianças de uma rede de tráfico e pedofilia. Todas elas estavam marcadas com o mesmo símbolo que Paul Bonacci e o suposto Johnny adulto tinham atrás da orelha, inclusive os indivíduos que trabalhavam para manter o esquema em pé, que confessaram também terem sido sequestrados quando jovens.
Jamais encontrado, Johnny Gosch talvez tenha se perdido em estatísticas ou permanecido refém de um esquema sujo, do qual deveria ser salvo. Este roubou não só a sua vida, mas também a de seus pais, que foram expostos, ludibriados e destinados eternamente ao sofrimento.