Ciência
29/10/2020 às 15:30•3 min de leitura
Para onde as pessoas vão quando morrem? Para o Céu ou Inferno? Para o Além ou para lugar nenhum? Elas só deixam de existir?
Essas são perguntas existenciais que assombram a humanidade com mais força desde as queixas e as reflexões da geração byroniana do “mal do século”, entre 1800 e 1900.
E quando as pessoas estão morrendo, para onde elas vão? A resposta mais óbvia e prática seria o hospital, porém, no século XIV, quando cerca de 60% da população europeia era ceifada pela peste bubônica, a resposta era: elas vão para Poveglia.
Em 1665, cerca de 300 anos depois que aconteceu a primeira “onda” da peste na Europa, causando a morte de aproximadamente 75 milhões de pessoas, o vilarejo de Eyam se destacou por implementar um método de quarentena para evitar que a praga entrasse e devastasse a todos. Os familiares das vítimas foram inibidos de velar os seus mortos, e os cadáveres que não puderam ser enterrados apenas foram largados em becos, pastos e ruas.
Em Eyam, os números de vítimas não ultrapassaram 155 entre os 700 habitantes, mas já foi o suficiente para que a situação se tornasse um caos, devido ao índice de contágio da doença. Qual foi o destino dos milhares de cadáveres da primeira “onda” da peste no resto da Europa? Poveglia.
A pequena ilha de 17 acres localizada entre Veneza e Lido, na Lagoa de Veneza, no norte da Itália, foi disputada pelos genoveses e venezianos durante as guerras do Império Napoleônico ao longo do século XIV. A região foi povoada até 1379, quando os habitantes foram transferidos para a ilha italiana de Giudecca devido aos ataques em Veneza orquestrados pelas tropas genovesas.
Por cerca de 200 anos, Poveglia permaneceu desabitada, sendo oferecida pelo Doge aos monges camaldulenses em 1527, que recusaram a oferta. Em meados de 1645, o governo veneziano construiu 5 fortes octogonais para proteger e controlar as idas e vindas da ilha.
Eventualmente, Poveglia acabou sendo controlada pela jurisdição do Serviço de Saúde Pública de Veneza e se tornou um ponto de controle de tudo o que chegava e saía de navio da cidade.
Em 1776, a administração italiana recebeu informações de que haviam pessoas infectadas com a peste bubônica em dois navios cheios que viajavam a caminho da cidade, então decidiram desviá-los até Poveglia para que os tripulantes fossem colocados em quarentena. Não houve um planejamento para que aquelas pessoas fossem salvas, portanto o resultado foi apenas uma catástrofe sem precedentes.
Apenas uma ou outra pessoa deixava Poveglia, mas isso não significava que essa não havia contraído a peste, tampouco que estava curada. Apesar da ineficácia das quarentenas para tratar aquele tipo de doença, as autoridades estavam desesperadas para encontrar um meio de minimizar os danos.
Nas primeiras semanas de infectados enviados para o local sem estrutura nenhuma, estima-se que cerca de 16 mil pessoas morreram. Poveglia também foi transformada em uma vala comum quando os cadáveres dos acometidos pela peste começaram a se empilhar nas ruas de Veneza. Navios e barcaças carregadas de mortos eram despejados na ilha em meio aos vivos.
Acredita-se que muitas pessoas enviadas para Poveglia não estavam de fato contaminadas, uma vez que as autoridades não possuíam um estudo ordenado de sintomas e só coletavam as pessoas que aparentavam estar doentes, sem se importarem se podia ou não se tratar da praga.
Quando os agentes oficiais que cuidavam da exportação dessas pessoas para Poveglia não conseguiram mais dar conta de enterrar tantos mortos, eles passaram a queimá-los. Durante 40 anos, a ilha abrigou 160 mil vítimas da doença, e cientistas afirmaram que mais de 50% do solo de Poveglia é constituído por cinzas humanas. As videiras foram as únicas plantações que prosperaram ao longo dos anos, aparentemente apáticas à poeira dos restos mortais que sufocou o crescimento de outras vegetações.
Em 1922, após mais de 100 anos abandonada, Poveglia ganhou um novo propósito, mas ainda assim obscuro: seria um centro psiquiátrico destinado especialmente para o tratamento de idosos. O governo repaginou os edifícios mal construídos que já existiam na ilha desde a época da peste e transformou-os em um asilo decadente, onde tudo faltava.
Com milhares de pacientes sendo encaminhados para Poveglia, não demorou para que se repetisse a estrutura doentia de abusos e experimentos que assombrava os hospitais psiquiátricos desde o início do século XIX. Nas mãos de médicos em formação ou de má reputação, os pacientes eram submetidos a testes científicos, cirurgias experimentais, lobotomias e abusos generalizados.
Em 1930, um médico que dissecava e amputava os pacientes para seus experimentos hediondos morreu após se lançar da torre do sino que ficava na estrutura central do sanatório de Poveglia. Algumas histórias afirmam que ele teria ficado assombrado pelos fantasmas da ilha. Não era novidade para ninguém, visto que os próprios funcionários tinham dificuldade em manter o emprego por causa da atmosfera diabólica que cercava o local.
Por incrível que pareça, o hospital permaneceu aberto até 1968, que foi o tempo que as autoridades italianas levou para concluir que o projeto havia sido um fracasso, uma vez que não gerava resultados significativos na recuperação de seus pacientes e só trazia despesas desnecessárias.
Em 2014, Veneza tentou leiloar a ilha, mas, devido ao seu histórico, o único lance que receberam foi de US$ 704 mil. Ninguém quer Poveglia, portanto seu status permanece incerto e atualmente é terminantemente proibida para visitantes. O lugar é considerado um dos mais assombrados de toda a Europa, onde as águas continuam a acumular na areia da costa os ossos humanos perdidos pelo século.
Até hoje o cronista Rocco Benedetti ainda tem razão de sua definição para Poveglia: “Parece um inferno”.