O fantasma de Hammersmith: o caso que mudou o código penal inglês

18/11/2020 às 15:004 min de leitura

Foi em meados de novembro de 1803 que surgiram as histórias de que alguns moradores de Hammersmith viram e até foram atacados por um fantasma. Descrita como um vulto altaneiro vestido de branco, mas que também tinha pele de bezerro, chifres e olhos de vidro, a assombração foi vista rondando o cemitério local. 

Não demorou muito para que as pessoas especulassem que era o espírito de um homem que cometera suicídio no ano anterior. De acordo com a crença, que permaneceu até 1882, aqueles que tiravam a própria vida não deveriam ser enterrados em solo sagrado, pois suas almas não descansavam.

Os boatos logo contaminaram todo o distrito. Thomas Groom, o servo de um cervejeiro, alegou que foi surpreendido pelo fantasma enquanto caminhava com um amigo, por volta das 21h, perto da igreja do cemitério, quando a aparição surgiu e o agarrou pelo pescoço. Segundo Groom, se não fosse pelo amigo, que também foi atacado, ele não saberia qual seria seu fim.

O homem de branco

(Fonte: National Galleries of Scottland/Reprodução)
(Fonte: National Galleries of Scottland/Reprodução)

Em 29 de dezembro, foi a vez de William Girdler, um vigia noturno, ver e perseguir o fantasma próximo a Beaver Lane, mas a aparição conseguiu jogar sua mortalha para trás e escapar. Uma vez que Londres não possuía uma força policial adequada, muitos cidadãos aterrorizados pelos ataques decidiram formar esquadrões armados na esperança de capturar o fantasma. Porém, prender uma aparição com as próprias mãos não pareceu uma decisão insensata.

Era por volta de 22h30 de 3 de janeiro de 1804 quando Girdler encontrou o oficial de impostos Francis Smith, então com 29 anos, fazendo a patrulha da área atrás da suposta entidade maligna. Armado com uma espingarda, Smith disse a Girdler que estava determinado a colocar um fim no fantasma naquela noite. Girdler disse que em meia hora poderia se juntar ao homem para fazerem isso juntos, então eles seguiram em caminhos separados.

(Fonte: Library of Congress/Reprodução)
(Fonte: Library of Congress/Reprodução)

Era pouco mais que 23h quando Thomas Millwood levava sua irmã, Anne Millwood, para casa — ele ainda vestia a roupa que usava no trabalho: calça branca de linho, colete de flanela branco e um avental da mesma cor por cima — quando cruzou caminho com Smith enquanto se dirigia para Black Lion Lane.

Segundo testemunho de Anne, ela ouviu Smith gritar: “Maldito seja! Quem é você?! Maldito seja, vou atirar em você!”. Logo depois de dizer isso, ela viu o homem disparar contra seu irmão no lado esquerdo de sua mandíbula inferior, causando sua morte imediata.

Ainda muito assustado, Smith foi levado sob custódia para a delegacia.

O julgamento de um século

(Fonte: Crime Magazine/Reprodução)
(Fonte: Crime Magazine/Reprodução)

O julgamento de Francis Smith aconteceu na Corte Criminal Central de Londres, conhecida também como Old Bailey, no final de 1804. Smith foi acusado de homicídio simples.

Durante o julgamento, a Sra. Fullbrooke, esposa de Thomas Millwood, testemunhou que já havia pedido várias vezes para que o marido não andasse todo de branco durante à noite por causa da aparição que rondava Hammersmith. O homem já havia sido confundido outras vezes com a entidade, mas felizmente nada de pior tinha acontecido até então. Por outro lado, Anne Millwood alegou que, apesar de Smith ter pedido para que seu irmão parasse, ele atirou imediatamente, sem margem para que seu irmão fizesse algo.

Várias testemunhas deram declarações sobre o caráter e boa índole de Francis Smith, porém o juiz do caso, Sir Lord Baron Archibald MacDonald, deixou claro que a malícia não era necessária em um assassinato, apenas a intenção de matar.

(Fonte: British History Online/Reprodução)
(Fonte: British History Online/Reprodução)

Smith confessou que atirou em Millwood, mas porque acreditava piamente que ele era o fantasma. O depoimento de John Locke deixou claro que Smith cometera o crime em legítima defesa, afirmando que a vítima “tinha avançado”. A defesa então recorreu à acusação de homicídio culposo, quando não há intenção de matar. O júri tomou a mesma decisão.

No entanto, o juiz declarou que Smith acreditar que a vítima era uma assombração não deveria ser considerado um fator. No final das contas, o réu não tinha agido em legítima defesa, pois não havia sido atacado pela suposta aparição nem atirara em Millwood por acidente. Portanto, Baron fez o júri deliberar: condenava o réu a assassinato ou o inocentava.

Thomas Smith foi considerado culpado e condenado à morte por enforcamento, porém sua sentença foi reduzida para 1 ano de reclusão e trabalhos forçados depois que o juiz levou seu caso à Suprema Corte Real.

O dilema de Smith

(Fonte: Free Movement/Reprodução)
(Fonte: Free Movement/Reprodução)

O caso de Francis Smith e o fantasma de Hammersmith revelou uma falha grave no código penal inglês: a falta de defesa para uma pessoa que agia de boa fé em uma situação em que a ação, incluindo a violência, fazia-se necessária. Ao longo de 180 anos, a questão de saber se agir com base em uma crença errada era uma defesa suficiente para uma acusação criminal foi debatida até 1984, quando o código penal se deparou no Tribunal de Apelação com o caso Regina v Williams.

Em 1983, Williams Gladstone atacou gravemente um homem após vê-lo arrastando um jovem no meio da rua. Contudo, ele descobriu depois que o jovem havia cometido roubo e que ele tinha interrompido a sua apreensão. Em seu julgamento, Gladstone alegou que só atacou a vítima porque genuinamente acreditava que ela era o criminoso. O júri foi informado de que o erro só podia ser uma defesa se fosse razoável, então eles o consideraram culpado.

(Fonte: Londonist/Reprodução)
(Fonte: Londonist/Reprodução)

O réu apelou o veredicto e seu advogado apresentou o caso de Smith para o tribunal. Gladstone teve a sua condenação anulada devido ao código penal falho. Mais tarde, o recurso foi transformado na Lei de Justiça e Imigração Criminal de 2008, que na Seção 78 declara: “Se um indivíduo acreditou erroneamente que a força era necessária para se proteger ou para evitar que um crime fosse cometido, então, desde que essa crença seja razoavelmente mantida e a acusação não possa provar o contrário, nenhum crime terá ocorrido”.

O caso de Williams Gladstone se encerrou junto ao de Francis Smith, que ganhou uma placa do lado de fora do pub Black Lion, em Londres. O fantasma que assombrava Hammersmith nunca mais foi visto depois da morte de Millwood, o que só levantou a possibilidade de que de fato poderia ser uma pessoa por debaixo do lençol branco.

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