Ciência
04/02/2023 às 08:00•3 min de leitura
A Roma Antiga carrega até hoje o título de pioneira no sistema de saneamento, considerado o mais avançado de todas as civilizações daquele tempo. No entanto, engana-se quem imagina que todos tinham acesso ao mesmo tipo de configuração para higiene pessoal. Ter bons hábitos de limpeza era considerado um luxo que só os ricos poderiam pagar, podendo ter acesso aos notórios banhos públicos, piscinas termais e ao privilégio de não precisar lidar com o descarte das próprias fezes.
Nada disso chegava até aos cortiços romanos. Sem acesso à água corrente, os pobres precisavam fazer suas necessidades fisiológicas em penicos ou caixas, armazenadas em cubas sob escadas para depois serem esvaziadas em fossas localizadas em várias partes da cidade. Ou seja, eles precisavam conviver em meio ao cheiro insuportável e ainda lidar diretamente com as infecções que as fezes traziam.
A Roma Antiga acabou e o mundo prosperou e se modernizou em todos os aspectos possíveis, mas essa falta de acesso ao saneamento básico e banheiros adequados ainda é a realidade de 60% das pessoas do mundo – ou seja, 4,5 bilhões. Atualmente, as crianças das áreas miseráveis de Bangladesh defecam ao ar livre, poluindo o meio ambiente e se contaminando com doenças por não terem acesso a banheiros adequados.
É pensando nisso que estudos e empresas trabalham para transformar fezes humanas em moradias.
(Fonte: Climate Central/Reprodução)
Um relatório divulgado em 2015 pelo Instituto Universitário das Nações Unidas para Água, Meio Ambiente e Saúde mostrou que esses dejetos humanos defecados ao ar livre poderiam ser aproveitados para aquecer ou abastecer milhares de residências. Ao coletar esse bolo com todo o lodo gerado e aquecê-lo em fornos a temperaturas superiores a 300?°C, é possível produzir briquetes semelhantes ao carvão, gerando até 8,5 milhões de toneladas de carvão vegetal. Esses briquetes carregam o mesmo conteúdo de energia, quilo por quilo, que o mineral.
Se colocados em grandes tanques e fermentados com micróbios produtores de metano, o gás produzido pode valer até US$ 376 milhões para ser usado como eletricidade – o suficiente para abastecer cerca de 18 milhões de domicílios. Os pesquisadores do estudo estimam que, em geral, o valor do gás produzido por essa fermentação cobriria os custos de construção e manutenção do sistema de produção em apenas alguns anos.
Em 2022, a empresa Sanivation, com sede em Nairóbi, capital do Quênia, já transformava esses resíduos em carvão para ser usado como combustível para aquecer até alimentos. A princípio, o empreendimento sofreu para prosperar, porém, agora, Paul Manda, gerente da fábrica, disse que algumas pessoas usam os briquetes para fazer até mesmo churrasco. No momento, a empresa vende mais de 120 toneladas de briquetes para todos os setores.
(Fonte: Andrew F. Kazmierski/Shutterstock)
Essa ressignificação das fezes humanas é um caminho importante para um futuro mais consciente com relação ao meio ambiente. Cerca de 33 árvores são poupadas a cada tonelada de combustível feito de briquetes.
Além disso, a implementação desse tipo de sistema lida de maneira segura com os dejetos mal gerenciados. Cerca de 41% dos quenianos não têm acesso a soluções de saneamento básico, segundo a instituição de caridade Water.org; sendo que 8,5% da população praticava defecação ao ar livre em 2020, conforme o programa conjunto de água da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da UNICEF.
A venda dos briquetes para fábricas e empresas se tornou um benefício de mão dupla. Mary Wangui, gerente da fazenda de flores Larmona, que cozinha comida no local para seus funcionários, alegou que a fumaça dos briquetes tem menos efeito sobre os empregados que o carvão; e que até as panelas duram mais tempo sendo cozidas sobre eles. E, em cima de tudo isso, está o custo benefício da matéria-prima.
“O calor dos briquetes dura mais tempo, o que significa que usamos menos em comparação com o que costumávamos usar com o carvão”, acrescentou Wangui à Euronews.
(Fonte: Global Citizen/Reprodução)
E não é só isso, o professor e especialista em construção, Abbas Mohajerani, da Universidade RMIT da Austrália, passou 15 anos explorando ingredientes sustentáveis para aplicar na engenharia. Foi assim que chegou nos tijolos feitos de biossólidos, ou seja, dejetos humanos concentrados.
Anualmente, são produtos cerca de 1.500 bilhões de tijolos comuns no mundo, requerendo muito solo argiloso. Essa busca desenfreada da indústria a fez incorporar vários resíduos ao produto, de serragem a cascas de arroz, para diminuir seu impacto ambiental na exploração.
Mohajerani e sua equipe removeram amostras de estações de tratamento de água residuais na Austrália, levaram para o laboratório, secaram e as queimaram para que fossem misturadas ao solo argiloso. Os testes mostraram que os tijolos de fezes humanas eram equivalentes aos tradicionais feitos 100% de barro.
A densidade, porosidade e outros aspectos técnicos da firmeza dos tijolos ainda é algo a ser aprimorado. Só por isso estão longe de chegarem até às construções, mas já se mostram como a reutilização das fezes pode dominar todos os aspectos do futuro.