Ciência
25/03/2023 às 10:00•3 min de leitura
Desde pequena, o sonho de Jewel Shuping, moradora da Carolina do Norte, sempre foi diferente das demais crianças. Enquanto algumas delas falavam sobre viajar para longe, se tornar médicos ou bombeiros, o sonho de Jewel era ser cega – sendo que nasceu com a visão perfeitamente saudável.
Ao longo dos anos, o que era apenas um sonho – e poderia ser considerado "coisa de criança" – não desapareceu. Muito pelo contrário, passou de sonho para uma verdadeira obsessão, a ponto de causar picos de estresse e depressão em Jewel.
Jewel Schuping. (Fonte: Ruaridh Connellan/Barcroft Media/Reprodução)
Até que, aos 21 anos, Jewel decidiu resolver o problema por conta própria. Ela derramou limpador de ralo em seus olhos e esperou até que os danos em suas córneas fossem irreversíveis para procurar atendimento médico – e foi o que aconteceu. Gradualmente, a jovem perdeu a visão, e hoje, quase completamente cega, sente que não poderia estar mais satisfeita.
Jewel Shuping é portadora de Transtorno de Identidade de Integridade Corporal (BIID), uma condição raríssima que faz as pessoas fisicamente aptas acreditarem que deveriam ser deficientes.
(Fonte: ChooChin/Shutterstock)
Os portadores de BIID não conseguem se livrar de um sentimento insaciável de incompletude, uma verdadeira antítese, porque, em função de se sentirem verdadeiramente completos, eles precisam se livrar de uma parte de seu corpo, como foi o caso de Shuping.
Um estudo publicado na revista Current Biology por Gianluca Saeta, doutorando na Universidade de Zurique, que entrevistou 16 homens que desejavam amputar seus membros inferiores, mostra que os pesquisadores acreditam que a condição seja motivada por uma incompatibilidade entre a imagem mental de alguém sobre sua imagem corporal e físico real. Ou seja, no BIID, uma parte do cérebro associada à imagem corporal tem menos conectividade funcional com outras partes do cérebro.
Segundo Peter Brugger, professor de neurologia e neuropsiquiatria da Universidade de Zurique, a arquitetura neural dos portadores de BIID é visivelmente diferente no lóbulo paracentral, a parte do cérebro que controla como nos sentimos e interpretamos o feedback dos membros inferiores, com uma conectividade reduzida com relação às outras áreas do cérebro.
(Fonte: Getty Images)
Além disso, o lóbulo parietal superior direito, usado para construir a imagem total do corpo, também tem uma conectividade e densidade reduzida de massa cinzenta, indicando menos atividade neuronal.
Saetta explica que a sensação de que um membro nos pertence depende da extensão em que a área sensório-motora dele está funcionalmente conectada a todas as outras regiões do cérebro. Portanto, ter massa cinzenta suficiente na região parietal direita do cérebro é necessário para criar uma percepção saudável do corpo no espaço.
(Fonte: Rory Dunning/Barcroft Media/Reprodução)
A vontade de Shuping ficar cega começou aos 3 ou 4 anos, quando ela nem entendia o que isso significava, apenas sentia a necessidade de andar pelos corredores de sua casa de olhos fechados o dia inteiro. Já aos 6 anos, pensar em ser cega trazia um sentimento de conforto e paz, visto que poder enxergar era doloroso para ela.
À medida que crescia, não só o desejo aumentou, como ela passou a cada vez mais emular uma vida de cega, chegando a comprar uma bengala e aprender a ler Braille fluentemente. Foi, inclusive, o pensamento de que estava ficando cega e tudo ficaria bem que a ajudou a aguentar a dor do limpador de ralo derretendo seus olhos e queimando a pele do seu rosto conforme escorria.
A princípio, ela mentiu para seus familiares dizendo que a cegueira era fruto de um acidente que sofreu. Depois que descobriram a verdade, sua mãe e irmã cortaram relações com ela. Shuping entende, mas diz que a maneira como ficou deficiente realmente não importa, pois encara mais como uma necessidade, não uma escolha. Apesar disso, ela não se arrepende de sua decisão, embora não recomende seu método drástico a ninguém.
(Fonte: Ruaridh Connellan/Barcroft Media/Reprodução)
Até o momento, não existe uma cura ou tratamento conhecido para o BIID. Enquanto isso, os portadores vivem o desconforto de conviverem com partes do seu corpo que detestam. Como já aconteceu com Shuping, alguns vivem o alívio temporário fingindo ser um amputado, por exemplo, usando muletas ou cadeira de rodas.
Visto que geralmente aqueles com BIID ficam em silêncio, fora as pessoas que participam de fóruns online compartilhando seu sofrimento, isso dificulta para os pesquisadores fazerem uma leitura de quantas pessoas podem ter o transtorno no mundo.
Existem apenas cerca de 200 casos registrados de BIID na literatura médica, e a condição foi recentemente incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID).