Artes/cultura
13/03/2018 às 04:00•3 min de leitura
Caso você nunca tenha ouvido falar a respeito dos castrati italianos, eles foram famosos cantores de ópera que conseguiam alcançar tons de voz normalmente femininos, como o soprano, o meio-soprano e o contralto. E como esses homens faziam isso? Quando ainda eram meninos, os que tinham grande talento identificado eram castrados com o objetivo de evitar que a sua voz mudasse com a chegada da puberdade.
Na verdade, a castração de meninos para preservar o tom de voz feminino não foi uma prática inventada pelos italianos. Como você deve saber, os eunucos eram muito usados como serviçais na antiguidade, e não demorou até que alguém percebesse que alguns deles tinham extraordinário talento musical.
Papa Sisto V
Tanto que existem registros históricos de que os bizantinos já se deleitavam com o som prodigioso produzido por esses cantores por volta do ano 400. No entanto, foi na Itália do século 16 que os castrati realmente ganharam destaque — tudo depois de o Papa Sisto V banir as mulheres de cantarem em público.
A proibição da Igreja Católica se tornou um grande problema para o mundo da ópera, já que as vozes femininas eram indispensáveis durante a execução das grandes obras. Em seu lugar, os compositores passaram a empregar meninos. Entretanto, uma vez que eles atingiam a puberdade, suas vozes começavam a mudar e, portanto, seus “talentos” se perdiam. Foi então que as castrações tiveram início, para frear esse processo natural e capturar as delicadas vozes para sempre.
Confira a seguir um trecho do filme “Farinelli”, de 1994, baseado na vida de um ilustre castrato do século 18 chamado Carlo Broschi:
O problema é que, oficialmente, as leia da igreja proibiam a amputação de qualquer órgão, a não ser que o procedimento fosse necessário para salvar a vida de alguém. Assim, quando um menino de grande talento era identificado, essa criança normalmente era levada a um cirurgião clandestino e fortemente sedada — geralmente com ópio —, embora o acesso a anestésicos fosse raro na época.
Outras opções envolviam colocar o menino em uma banheira quentinha e pressionar a carótida até a criança ficar comatosa ou, ainda, dar um banho frio no pobre com o objetivo de amortecer a região a ser operada ou colocar o garoto em um banho de leite. O método menos agressivo envolvia cortar os cordões espermáticos, que são estruturas que partem do abdome até os testículos, o que causava a atrofia do escroto com o tempo, entretanto existem registros de mutilações brutais também.
Como resultado, os meninos castrados paravam de produzir a di-hidrotestosterona, uma forma da testosterona mais potente e que possui uma maior facilidade de ligação com os receptores do que o hormônio comum.
Meninos talentosos eram selecionados para passar pelo procedimento
Aliás, a exposição à testosterona faz com que as cordas vocais dos meninos aumentem de tamanho (em até 63%), além de fazer com que a tiroide, uma glândula que fica na frente da traqueia, fique maior e se torne mais espessa — dando origem ao pomo-de-adão. Ao ter os testículos atrofiados ou removidos, as cordas vocais dos castrati apresentavam dimensões parecidas às de mulheres sopranos.
Outro fator importante é que, conforme os meninos castrados cresciam, a falta de testosterona causava uma série de complicações. Em alguns casos, o crescimento era prejudicado, levando um certo número de castrati a ser mais baixo do que o normal. Contudo, em outros garotos, a falta do hormônio impedia que as juntas ósseas se desenvolvessem normalmente, o que fazia com que eles não parassem de crescer e tivessem pernas e braços mais longos.
Carlo Scalzi, um dos famosos castrati italianos
Um aspecto “positivo” — por assim dizer — desse crescimento descontrolado, é que ele também podia afetar o desenvolvimento da caixa torácica, do maxilar e até do nariz. Com isso, os castrati bem treinados não só tinham vozes mais finas, como uma extraordinária capacidade pulmonar.
Não era nada fácil determinar com precisão qual era o momento perfeito para que os meninos fossem castrados, pois cada organismo se desenvolve em seu próprio tempo. Mas, de modo geral, acreditava-se que os garotos que passavam pelo procedimento antes dos 10 anos cresciam com mais características femininas, enquanto que os que se submetiam a ele após essa idade apresentavam um desenvolvimento mais normal — e podiam inclusive ser sexualmente ativos.
Alguns castrati se transformaram em verdadeiras estrelas de seu tempo. Portanto, como eles não podiam ter filhos (por razões óbvias), não demorou até que mulheres da alta sociedade vissem neles os amantes perfeitos. Inclusive circulavam boatos picantes sobre os cantores eunucos, muitos afirmando que eles não vivenciavam as mesmas sensações durante o sexo, o que dava a esses homens mais energia — e rendeu a muitos uma reputação e tanto.
Quadro mostrando Farinelli, um dos castrati mais famosos que existiram
Segundo algumas fontes, as nobres tiravam proveito da aparência afeminada dos eunucos para fazer com que eles passassem despercebidos em festas e eventos, traindo seus maridos ciumentos bem debaixo de seus narizes. Ademais, graças à forma andrógina, os castrati também despertavam o desejo dos homens. No entanto, ao não se encaixarem em um gênero específico, a verdade é que esses pobres cantores viviam em um estado de conflito e contradição perpétuos.
No ápice da fama dos castrati, cerca de 5 mil meninos eram castrados todos os anos. Infelizmente, nem todos se transformavam em celebridades adoradas pela sociedade europeia, e a maioria acabava sendo descartada como cantores medíocres — e condenada a ter papéis secundários nas óperas ou fazer parte de simples corais de igreja.
Alessandro Moreschi, o último castrato oficial
Alessandro Moreschi, o último castrato oficial se aposentou de suas atividades na Capela Sistina em 1913. Entretanto, muitos historiadores suspeitam que outro cantor, o italiano Domenico Mancini, que fez parte do coral papal até 1959, também era secretamente um eunuco. Confira a seguir uma antiga gravação de Moreschi cantando “Hostias et preces”: