Ciência
27/10/2015 às 12:45•8 min de leitura
A edição de 2015 do Enem aconteceu nos dias 24 e 25 de outubro e, como todos os anos, há sempre os assuntos mais comentados a respeito da prova. Dessa vez, o que parece ter chamado mais a atenção mesmo foi uma pergunta da prova de Ciências Humanas, que fez referência a uma das citações mais famosas de Simone de Beauvoir. A questão em si contextualizava as lutas feministas da metade do século 20. quando a palavra “feminismo” entra em pauta, vem com ela uma avalanche de polêmicas. Sempre.
O reflexo da questão pôde ser sentido fortemente nas redes sociais, em que pessoas contra e a favor do tema se manifestaram de todas as formas possíveis. Por um lado, ativistas feministas comemoravam a abordagem do assunto. Por outro, antifeministas se revoltavam tanto com a questão em si quanto com a comemoração das feministas e dos defensores da ideologia que prega, basicamente, a igualdade entre os gêneros feminino e masculino.
Feminismo resiste <3 3="" p=""> Posted by Empodere Duas Mulheres on Saturday, 24 October 2015
É interessante perceber que algumas pessoas, principalmente aquelas que não se dizem feministas e também aquelas que não sabem muito bem o que é feminismo, criticaram a autora em questão sem saber muita coisa sobre ela. O que poderia se transformar em um debate interessante acaba virando uma troca de ofensas sem muito sentido. Ora, se um crítico de vinhos estuda o cultivo de cada tipo de uva e a qualidade de produção de cada safra, não seria interessante saber melhor quem foi Simone de Beauvoir antes de sair falando bem ou mal dela?
Nós aqui do Mega temos bastante noção de que muitos de nossos leitores se irritam apenas com a palavra “feminismo” e já prevemos que os comentários neste texto não serão muito educados. Ainda assim, resolvemos falar sobre essa mulher, que pode ter uma legião de odiadores em todo o mundo, mas também fez muita coisa interessante durante a sua vida.
Nascida em Paris no dia 9 de janeiro de 1908, Simone de Beauvoir é considerada um dos nomes mais influentes do feminismo moderno. Criada em uma família tradicionalmente católica, optou pelo ateísmo quando ainda era adolescente. Questões relacionadas à existência, no entanto, nunca deixaram de fazer parte de seus interesses – ela só deixou de analisar esses assuntos com base religiosa.
Aos 21 anos, Beauvoir saiu de casa para estudar Filosofia na Universidade de Sorbonne. No ano de sua graduação, em 1929, ela conheceu o famoso filósofo Jean-Paul Sartre, dando início a uma relação amorosa bastante peculiar, que é discutida, criticada e estudada até hoje.
Como os dois eram filósofos, a relação, além de romântica e com um grande cunho de amizade, tinha também uma troca intelectual grandiosa. Pode-se dizer, portanto, que Beauvoir influenciou o trabalho de Sartre, assim como o contrário também é verdadeiro.
O casal estava sempre à frente de seu tempo e buscava quebrar os mais diversos paradigmas. Por não concordarem com os princípios da monogamia, por exemplo, tinham uma relação aberta a experiências amorosas e sexuais com outras pessoas. O casamento também não fez parte da vida do casal, graças à crença de Beauvoir de que o relacionamento deles não deveria ser definido com base em normas institucionais.
Em um primeiro momento, é comum que esse tipo de comportamento provoque estranheza. Acontece que, se pensarmos na questão da Filosofia, apenas, temos conceitos que estão sempre ligados a questionamentos com relação a temas como estruturação social, crenças religiosas, formas de governo e, inclusive, àqueles relacionados a gênero.
Por essência, a Filosofia é justamente esse exercício de análise. No aclamado livro “O Segundo Sexo”, de Beauvoir e de onde foi tirada a citação que foi utilizada no Enem, a autora começa justamente questionando a origem das organizações sociais que nos parecem tão normais hoje.
Quem foi que começou tudo? Quem definiu que homens são superiores às mulheres? Se você está pensando que hoje as mulheres já podem trabalhar, votar e tudo o mais, ao menos no Brasil, saiba que não estamos falando da atualidade, mas de situações mais antigas, que formaram a base da existência do ser humano enquanto criatura social e que, obviamente, influenciam a forma como vivemos até hoje.
Se até os dardos utilizados no atletismo têm origem nas lanças que os homens primitivos usavam para caçar, seria ingenuidade nossa acreditar que decisões sociais tomadas por pessoas sem muito conhecimento científico e psicológico, e que sempre colocaram as mulheres como inferiores, não continuariam a influenciar o comportamento humano. Esse tipo de influência é tão forte e “natural” que nem percebemos que ela existe.
Mulher que era, Beauvoir começou a questionar o papel social do gênero ao qual pertencia – inclusive dentro da própria Filosofia! No mesmo livro citado anteriormente, há uma fala de Pitágoras, filósofo e matemático grego: “Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher”.
Se há alguns séculos a mulher não podia trabalhar, votar ou expressar uma opinião em praticamente toda a sociedade civilizada, podemos concluir que todos os filósofos, pensadores, inventores, artistas, cientistas e políticos de renome eram homens. Agora, sendo simplistas ao máximo, vamos fazer uma comparação: meninos, vocês não sabem, por exemplo, o prazer que o clitóris proporciona nem conseguem conceber a ideia de um orgasmo que dure mais do que alguns meros segundos, certo?
Vocês conseguiriam, então, rapazes, explicar EXATAMENTE o que é um orgasmo múltiplo? A resposta, a gente sabe, é não. E aí você se pergunta como essa autora feminazi maluca e idiota começou a falar de orgasmos múltiplos. Eu explico: se o sexo é um dos fatores que difere homens e mulheres, e se, além disso, é um dos assuntos que mais nos fazem prestar atenção, nada melhor do que ele para explicar que homens não podem falar em nome das mulheres. E vice-versa.
Eu, Daiana, redatora do Mega Curioso, jamais poderei dizer qual é o prazer que um homem sente quando recebe sexo oral. Simplesmente porque eu não tenho um pênis. Beauvoir, como muitas mulheres, que se dizem ou não feministas, sempre achou errado que o papel social das mulheres fosse ditado por homens. Como os homens poderiam estipular os limites das mulheres se eles não sabiam como era ser mulher?
A citação usada na prova do Enem – “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (p. 361 de “O Segundo Sexo”) – foi escrita pela autora depois de 360 páginas de um texto complexo, que reuniu conceitos biológicos, psicanalíticos e históricos sobre ser mulher. Como boa pesquisadora que era, Beauvoir teve sempre o cuidado de não fundamentar suas publicações com base no que ELA achava, mas sim com base em análises dos mais diversos historiadores, filósofos, religiosos, artistas e formadores de opinião, de um modo geral.
A frase, fora de contexto, pode parecer sem muito sentido, mas quem conhece a obra da autora e a linha de raciocínio dela percebe que se trata de uma síntese de tudo o que ela explica antes: a formação social da mulher, do papel da mulher, com base em uma ideia de inferioridade que surge, na verdade, nas crenças antigas que sempre atribuíram ao gênero feminino a noção de fragilidade, e ao masculino, o de força e virilidade.
Nesse sentido, podemos dizer que ideia enraizada e que ainda persevera é a de que o homem, enquanto criatura dona de um falo idolatrado, não pode ser “inferior” à mulher, quando esse nunca foi o objetivo. “Assim como eu não acredito que as mulheres são naturalmente inferiores aos homens, também não acredito que elas são naturalmente superiores”, disse ela, em uma entrevista em 1976.
A própria Beauvoir não começou seus estudos se definindo como feminista – em vez disso, ela estudava as propostas de formações sociais e buscava uma forma de propor igualdade. Com o passar do tempo, observou que nenhum modelo tratava as mulheres de forma igualitária em relação aos homens, e seus estudos começaram a mudar de rumo.
Suas declarações eram polêmicas. Quando disse que a maternidade era uma forma de escravidão, por exemplo, foi criticada amplamente. A escravidão a que se referia era o modelo tradicional no qual a mulher nascia para se casar, procriar e cuidar da casa, deixando, assim, de estudar, trabalhar e ter interesses além da cozinha.
Por causa desse tipo de declaração, a autora acabou sendo alvo de perseguição e de pessoas que tentavam tirar os méritos de seus trabalhos. Em discussões feministas modernas, há não apenas discussões sobre a obra de Beauvoir, mas também críticas a essa obra – pode-se dizer, por exemplo, que um dos grandes “pecados” do feminismo moderno foi a ausência de mulheres negras. Se o feminismo é, em princípio e por essência, para todas, por que dar voz somente às mulheres brancas?
Felizmente, assim como toda linha de estudo que está sempre evoluindo, o feminismo de hoje conta não apenas com feministas negras, que precisam de seu papel protagonista, como com feministas transexuais e lésbicas, que também necessitam de representatividade.
Simone de Beauvoir pode ser um dos nomes mais aclamados na área, mas além dela há muitas mulheres que questionaram e que ainda questionam as estruturas sociais, a representatividade política, as medidas tomadas em relação aos casos de misoginia, as questões de gênero e tantos outros assuntos que, por interferirem direta ou indiretamente na vida das pessoas, devem sempre ser debatidos.
No Brasil, atualmente podemos citar o trabalho de Djamila Ribeiro e Maria Clara Araújo como bons exemplos. Duas mulheres que, ao abordarem o feminismo negro e transgênero, vão, aos poucos, ajudando a criar um espaço mais amplo e ideal de debate. Ao contrário do que se pensa, a luta feminista não precisa parar pelo voto ter sido concedido às mulheres. Os problemas que muita gente enfrenta apenas por ser do gênero feminino, não só no Brasil, mas em todo o mundo, ainda são assustadores.
Ver uma citação de Beauvoir em uma prova realizada por milhões de adolescentes tem, sim, um valor histórico muito alto, que nem todo mundo consegue ver. Como dissemos no início do texto, esse tipo de problematização passa a ser mais bem compreendido a partir do momento em que questionamos o universo à nossa volta.
Apelando de novo à primeira pessoa, posso dizer que eu, Daiana, já me referi ao feminismo como um burburinho sem propósito, quando era mais jovem. Foi por meio da curiosidade, do questionamento e da leitura que comecei a abrir minha mente nesse sentido e a desconstruir ideias que, eu nem percebia, não pululavam minha cabeça porque eram minhas, mas porque me foram enfiadas goela abaixo desde que me conheço por gente.
Por mais paradoxal que seja, quando o assunto é feminismo, desconstrução deveria ser sempre a palavra de ordem. Você, leitor que fez o Enem e não gostou da citação de Beauvoir, pode ser contra ou a favor do que quiser. Não estamos querendo convencê-lo a amar o feminismo e a autora em questão. A proposta aqui é a das mais simples: pensar. Pensando, demonstramos curiosidade, e a curiosidade, como você já sabe, é a base de grandes aprendizados e descobertas. Ainda que você discorde de absolutamente tudo o que leu até aqui, não é interessante pelo menos conhecer um pouco mais sobre o tema?
Alguns leitores comentaram a respeito das afirmações de que Beauvoir era nazista e pedófila, então resolvemos falar sobre esses aspectos também. Essa história, que circula em todo o mundo e não apenas no Brasil, teve início em uma publicação no A Voice For Men, quando um homem romeno, que era contra o feminismo, escreveu um artigo com inúmeras informações polêmicas sobre a vida da autora. Esse texto foi traduzido para diversos idiomas, e, desde então, é utilizado como fonte para que novos textos do mesmo estilo sejam publicados. E aí a coisa vira uma bola de neve.
O texto acusa Beauvoir de ser nazista, pedófila, misógina e misândrica – acusações que toda feminista, em menor ou maior grau, já deve ter ouvido. Como dissemos no início do texto, Beauvoir nasceu em 1908 e, portanto, viveu em uma época bem diferente da nossa, presenciando, inclusive, a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial.
A filósofa trabalhou na Rádio Nacional Francesa, a Radio-Vichy: “Escritores do nosso lado tacitamente adotavam algumas regras. Não se podia escrever nos jornais e nas revistas da zona ocupada nem falar na Rádio Paris; podia-se trabalhar para a imprensa da Zona Livre e para a Radio-Vichy: tudo dependia no sentido dos artigos e programas”, disse ela.
De acordo com a professora de Literatura Francesa e especialista na obra de Beauvoir, a alemã Ingrid Galster, não houve qualquer envolvimento da autora com o regime nazista. Para ler a análise completa e detalhada, clique aqui. Vale lembrar também que a filósofa fugiu da França em 1944 e só retornou depois da desocupação nazista. Neste link é possível fazer o download de um artigo escrito pela professora Susan Suleiman, de Harvard, também sobre o mesmo tema.
Sobre a pedofilia, a acusação tem a ver com o ideal libertário e provocador do casal Beauvoir e Sartre. Como estamos falando de pessoas que viviam em uma época na qual era comum que adolescentes de 15, 16 e 17 anos se casassem, para muitos é chocante que tanto Sartre como Beauvoir tivessem relações com pessoas dessa faixa etária – daí vem a questão da pedofilia.
Muitos assuntos que envolvem a vida sexual e social do casal são utilizados para denegrir a imagem de ambos, mas especialmente a de Beauvoir. Provocadores por natureza e especialistas em causar choques sociais e questionar tabus, são criticados, muitas vezes, por questões que envolvem julgamento de valor. Vai de cada um, então, decidir se o que importa é a contribuição social ou a vida particular de cada pessoa. Aliás, inúmeras intrigas envolvendo figuras públicas são levantadas com base na vida íntima dessas pessoas, e não em seus trabalhos.
No caso do artigo divulgado pelo A Voice For Men, a pedofilia foi fundamentada também a partir do ensaio que Beauvoir publicou em 1959 sobre Brigitte Bardot e a “Síndrome de Lolita”. De novo, voltando à primeira pessoa, posso dizer que, pessoalmente, não concordo com todos os posicionamentos de Beauvoir, mas isso, para mim, não diminui a contribuição dela com o feminismo. Além do mais, me parece fundamental sempre avaliar a questão pelo contexto histórico dentro do qual aconteceu. O que você acha?