Ciência
07/08/2022 às 05:00•3 min de leitura
A origem exata da varíola como doença natural é muito nublada na História. Alguns cientistas acreditam que ela tenha surgido em meados de 10 mil a.C., durante os primeiros assentamentos agrícolas no nordeste da África, enquanto outros atribuem às erupções semelhantes descritas em múmias egípcias há pelo menos 3 mil anos. Por outro lado, a primeira descrição de uma doença exatamente como a varíola aconteceu na China do século IV d.C.
As piores epidemias aconteceram nos Estados Unidos entre 1721 e 1775, especificamente em Boston, Massachusetts, despertando um medo incontrolável nas pessoas devido a sua gravidade e índice de mortalidade. Estima-se que, em média, 3 em cada 10 pessoas morreram ao contraírem a doença, sendo que aquelas que sobreviveram ficaram com cicatrizes permanentes que poderiam ser graves.
A varíola não conheceu barreiras, derrubando homens e mulheres, velhos e jovens, brancos e negros; sendo responsável até pela redução da população nativa americana em 50% desde os estágios iniciais da colonização. Na América, a sangria foi uma tática usada para tentar controlar a doença, enquanto o Oriente Médio e partes da Ásia praticavam a inoculação – a exposição deliberada ao vírus como maneira de evitá-lo. No entanto, isso ainda resultou em casos da doença, porém com sintomas mais leves e maior chance de sobrevivência.
(Fonte: Los Angeles Urban League/Reprodução)
Nos EUA, a inoculação foi bastante usada por homens e mulheres escravizados como uma maneira de tentar sobreviver no apogeu da escravidão na América, quando o tráfico negreiro transportava mais de 30 mil pessoas por ano em situações doentias durante viagens de mais de um mês.
Mas como a credibilidade do povo negro era inexistente na comunidade médica ocidental, o método foi ostensivamente ignorado até o surto de 1721, em Boston. Em uma carta do infame Cotton Mather, conhecido por seu envolvimento nos Julgamentos de Salém, ele contou que seu escravo, Onesimus, explicou o método de inoculação que o salvou da varíola após contraí-la antes da epidemia.
Mather explicou que a operação, que deixou Onesimus com uma cicatriz no braço, o impedia de contrair a doença de maneira letal, pois seu organismo já havia sido exposto. A prática de introduzir pus, contendo o vírus da varíola de pústulas maduras, em uma incisão superficial na pele ou diretamente na veia da pessoa a ser inoculada, foi sugerida por Mather ao Dr. Zabdiel Boylston como prevenção à doença naquele ano.
Cotton Mather. (Fonte: American Antiquarium/Reprodução)
O procedimento causou um distúrbio na comunidade médica por ser considerado perigoso e podendo causar morte. O clero foi o primeiro a se opor ao método, trazendo o pensamento medieval ao dizer que a varíola havia sido formulada como uma maneira de Deus punir pecadores, e tentar evitá-la era o mesmo que interferir no plano divino.
Os médicos, por outro lado, se mostraram indignados porque a inoculação era "coisa de gente preta", com base em misticismo, magia negra, vodu e que não carregava nada de científico.
Em jornais, como o The New England Courant, os anti-inoculadores escreveram sobre sua desconfiança em inocular um corpo saudável com a doença, independentemente de se tratar de um surto pequeno. Eles também aproveitaram para acusar os médicos de encobrir mortes relacionadas às inoculações. Ou seja, a polarização tomou conta de todos os aspectos, uma situação não muito diferente de hoje.
Dr. Zabdiel Boylston. (Fonte: Framingham Biographies/Reprodução)
Após inocular o próprio filho com sucesso, Boylston vacinou seus escravos contra a doença antes de começar a fazer o mesmo com outros cidadãos que acreditavam que o método poderia, sim, ser eficaz. Das 242 pessoas inoculadas, apenas 6 morreram, ou seja, uma em cada 40, em contraste com a taxa de uma em cada 7 mortes da população que recusou o procedimento.
Naquele ano, a epidemia de varíola ceifou a vida de 844 pessoas em Boston, mais de 14% da população, servindo como caminho definitivo para a campanha de vacinação promovida por Edward Jenner, em 1796. A inoculação desempenhou um papel crucial na conscientização sobre a vacina porque mais soldados americanos morreram de varíola durante a Guerra Revolucionária Americana do que lutando contra o exército britânico. Seu uso correto reduziu a taxa de mortalidade para 2%.
(Fonte: Corbis/Getty Images)
George Washington, antes oposto a ideia, inoculou todo seu exército em meados de 1777. Mas é importante considerar que tudo isso só foi possível porque um homem branco e privilegiado, como Mather, legitimou a prática aos olhos dos americanos, inclusive levando todo o crédito por isso.
O testemunho vivo de Onesimus foi constantemente escondido pela História, portanto, precisa ser creditado cada vez mais.