Artes/cultura
06/05/2020 às 14:00•4 min de leitura
Foi no verão de 1978 que um grupo de soviéticos sobrevoou de helicóptero a região sul da taiga siberiana, a maior floresta do mundo, na Rússia, próximo a um vale de mata cerrada nos territórios de Abakan, a cerca de 160 quilômetros da fronteira com a Mongólia. O piloto procurava um local seguro para deixar geólogos que estavam em missão para estudar os prospectos do minério de ferro quando identificou uma clareira acima de uma montanha a cerca de 2 mil metros de altura.
Incapaz de acreditar no que via, o piloto teve que voar pela área várias vezes para entender que havia sulcos escuros no chão que só poderiam ter sido feitos por mãos humanas. De acordo com as autoridades soviéticas, não havia registros de vida humana a menos de 250 quilômetros dali.
Liderados por Galina Pismenskaia, os geólogos ficaram instigados com a descoberta e decidiram descer até o local para inspecionar de perto. Ao longo do caminho rumo ao topo da montanha, eles foram encontrando os primeiros sinais de atividade humana, como pedras assentadas para formar uma calçada e cercos de plantações. Perto de um riacho havia uma espécie de habitação empilhada em madeira escura, castigada pela severidade do tempo, similar às barricadas construídas por castores. Para que não desmoronasse, tábuas, cascas, estacas e demais objetos emolduravam a precária construção.
Descalço e vestindo uma camisa remendada feita a partir de um saco, foi um homem atarracado e idoso que recebeu os intrusos que bateram na porta da casa. O velho assustado não respondeu nada quando eles o cumprimentaram, então uma voz os convidou para entrar.
(Fonte: HypeScience/Reprodução)
Os geólogos conheceram a família Lykov, composta pelo patriarca, Karp Lykov, e os filhos, Savin, Natalia, Dmitry e Agafia. Eles estavam há 42 anos isolados.
Aos 77 anos de idade, o velho contou que durante a juventude foi perseguido pelo Império Czarista por ser membro de uma seita ortodoxa russa fundamentalista. Em 1918, tudo piorou quando o ateísmo dos bolcheviques repetiu o ciclo de perseguição contra os crentes assim que tomaram o poder. Em meados de 1936, quando o cristianismo também estava sendo atacado, um soldado do exército comunista assassinou o irmão de Lykov na vila onde eles moravam. Foi nesse momento que Karp Lykov pegou a esposa, Akulina, e os dois filhos, Savin e Natalia, e fugiu para a região mais selvagem e inóspita da Sibéria.
Os anos de afastamento reservaram à família uma vida muito árdua. Embora tivesse idade, o pai Lykov era o único que falava de modo inteligível. As duas filhas mastigavam os sons do idioma e acabavam produzindo uma espécie de arrulho que, aparentemente, era compreendido pelos outros.
Os dois filhos menores nunca tiveram contato com o mundo exterior ou viram alguém que não fosse da própria família. Eles sabiam que havia lugares chamados cidades, onde as pessoas viviam em casas amontoadas, os prédios. Tinham o conhecimento de que existiam outros países além da Rússia, mas nunca passou disso.
As crianças aprenderam a ler em livros de oração e uma Bíblia antiga da matriarca. Para ensinar os filhos a escrever, Akulina fabricou canetas com casca de árvore envolvida em caules de bétulas embebidos em suco de madressilva usado como tinta. À medida que foram crescendo, eles entenderam que a sobrevivência era o único objetivo de vida e que a diversão não tinha espaço. O mais próximo de lazer que eles tinham era o momento em que todos se sentavam ao redor do fogo para contar os sonhos que tiveram na última noite.
(Fonte: Medium/Reprodução)
Em um ambiente extremamente hostil, os Lykovs tiveram que sobreviver com ferramentas que dependiam de seus próprios recursos, tendo que substituir as poucas coisas que trouxeram para a vida na floresta. Quando os sapatos das crianças ficaram pequenos demais, foram criadas galochas de casca de bétula. As roupas que pertenciam ao velho mundo do qual os pais fizeram parte foram remendadas até que não sobrasse mais nada, sendo substituídas por panos de cânhamo cultivado a partir de sementes.
Quando as chaleiras que a família usava para cozinhar foram esgotadas pela ferrugem, eles as substituíram por cascas de bétula. Uma vez que estas não podiam ir ao fogo, os Lykovs desenvolveram uma dieta básica que consistia em uma espécie de pão de batata misturado com centeio moído e sementes de cânhamo. Além disso, eles comiam mirtilos e framboesas que cresciam ao lado da casa.
A fome foi um problema permanente na vida da família. Assim que Dmitry atingiu a vida adulta, em algum momento remoto da década de 1950, passou a caçar animais para que pudessem ter um sustento melhor. Sem nenhum tipo de arma, o homem criava armadilhas ou perseguia as presas montanha acima até que elas fossem forçadas a parar pela exaustão. Foi assim que ele desenvolveu a habilidade de correr descalço no pior inverno, com temperatura de 40 graus negativos.
(Fonte: All That's Interesting/Reprodução)
"Os anos de fome", assim foi definido o que talvez tenha sido o período mais obscuro e triste da vida da família Lykov. Começou com Dmitry voltando sem nenhuma caça após vários dias de procura. A situação piorou quando animais selvagens destruíram a colheita de cenouras e eles tiveram que se alimentar de folhas de tramazeira. Em junho daquele ano, a geada implacável sepultou o pouco que ainda restava, forçando-os a comer os próprios sapatos feito de cascas.
Incapaz de vê-los em uma situação pior, Akulina preferiu morrer de inanição a tirar da boca dos filhos o pouco que tinham. Após dias de dor, eles viram um milagre acontecer: um grão de centeio nasceu no canteiro de ervilhas. Os filhos trataram de erguer uma cerca ao redor dele e o protegeram dia e noite, pois a sobrevivência deles dependia disso. O espigão produziu 18 grãos, praticamente um banquete.
(Fonte: Siberian Times/Reprodução)
Os geólogos contaram o máximo que conseguiram dos principais acontecimentos dos últimos 42 anos, e a família ficou sem acreditar na maioria deles. Quando foram convidados para partir dali e retornar a um mundo que ainda não era ideal, mas era mais civilizado em comparação com o que os pais tinham deixado, eles se recusaram.
Os homens não conseguiram comprá-los com conforto nem modernidade, apesar de eles terem se encantado com as inovações, como a televisão. Karp Lykov, inclusive, passou horas sentado diante do aparelho em uma das raras vezes em que concordou em visitar a cidade mais próxima do local. Agafia chegou a rezar pelas suas transgressões ao ficar muito interessada nas coisas que lhe foram apresentadas.
Por muitos anos, os geólogos visitaram semanalmente a família Lykov, desenvolvendo uma amizade forte e honesta com aquelas pessoas. No outono de 1981, a história da família começou a se desmantelar, talvez atingida pelas duas realidades que não se emendavam. Naquele ano, Savin e Natalia morreram de insuficiência renal, resultado de anos de uma dieta parca demais. Dmitry morreu de pneumonia, provavelmente causada por uma infecção que ele adquiriu no contato com os visitantes.
(Fonte: BBC/Reprodução)
Em 1988, Karp Lykov morreu de causas naturais e Agafia o enterrou na encosta da montanha com a ajuda dos profissionais e construiu uma casa melhor e mais reforçada ao lado da antiga. Pela última vez, os geólogos tentaram convencê-la a deixar a floresta e ir morar com os parentes que sobreviveram às perseguições de 1930, mas ela se recusou a ouvi-los.
Agafia Lykov concordava com o pai: havia mal demais no mundo além daquelas montanhas, fosse esse mais evoluído ou não. E, apesar de a vida ter sido dura, ela tinha vivido feliz longe de tudo e de todos. Ainda que com muitas barreiras culturais, certamente a mulher entendia melhor do que ninguém o que o escritor Aldous Huxley quis dizer quando batizou o livro Admirável Mundo Novo.