Lysol: o desinfetante que já foi usado como método contraceptivo

13/12/2020 às 15:003 min de leitura

Logo que a infecção pelo novo coronavírus se expandiu em nível mundial e se tornou uma perigosa pandemia, o primeiro desinfetante aprovado pela Agência de Proteção Ambiental foi o Lysol. A escolha fez sentido porque em 1918, durante a pandemia de gripe espanhola, a empresa Lehn & Fink anunciou o produto como uma medida eficaz contra o vírus da gripe, sendo que em 1889 ele já havia sido usado na epidemia de cólera na Alemanha. Os anúncios em jornais e nas rádios destacavam que as pessoas precisavam limpar superfícies e lavar com Lysol tudo o que tivesse entrado em contato com os pacientes infectados, como uma maneira de prevenir a propagação do vírus.

Recém-chegado no mercado brasileiro, a marca de desinfetante foi criada nos Estados Unidos há mais de 131 anos. Derivado da palavra lysis, que significa “dissolução”, o lisol é uma emulsão fabricada através da junção de cresóis (um grupo de compostos químicos fenólicos) em uma solução de sabão feita a partir de hidróxido de potássio e óleo de linhaça, que possui propriedades desinfetantes e antissépticas.

O uso para outros meios

(Fonte: Marcianos/Reprodução)
(Fonte: Pinterest/Reprodução)

No entanto, em meados da década de 1920, o Lysol ganhou um novo propósito: produto para higiene feminina. O desinfetante se infiltrou nas revistas femininas e incentivou às mulheres a lavarem suas genitálias com o líquido “revolucionário”. De acordo com os próprios anúncios, o Lysol chegou no mercado feminino depois que “estudos” apontaram que os casais estavam tendo problemas conjugais devido aos “odores vaginais” – uma declaração extremamente machista e problemática. Então, muito embora fosse um produto destinado às “donas de casa” – como os anúncios se referiam –, o Lysol era um meio de beneficiar os maridos que não aguentavam mais serem repelidos pelos “fluídos e odores” que as genitálias de suas esposas emanavam.

(Fonte: Timeline/Reprodução)
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E para piorar a situação, os anúncios ainda explicitavam a ideia de que a infidelidade ou insatisfação dos homens estava ligado à “má higiene” das mulheres, e que por isso elas deviam “corrigir suas falhas”. 

“Um homem casa-se com uma mulher porque a ama. Portanto, em vez de culpá-lo se o amor conjugal começou a esfriar, ela deveria se questionar se está tentando manter seu marido feliz”, dizia um dos muitos anúncios do desinfetante. “A maneira mais eficaz de proteger seu charme feminino e mantê-lo delicado é praticando a higiene feminina completa fornecida pelas duchas vaginais Lysol, com uma preparação cientificamente correta!”.

Em outros casos, o marketing do produto era ainda mais perturbador com seu conteúdo discriminatório e repleto de misoginia e culpabilidade: “Sue estava furiosa com Tom pela maneira como ele a tratava. Mas ela era realmente a culpada! Ela sempre soube de a necessidade de uma boa higiene feminina. Acontece que ela foi negligente!”.

A mensagem velada

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
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Não era dito, porém, que o Lysol também servia como um método abortivo, pois o cresol em sua composição poderia induzir a um aborto quando usado como sabão íntimo e introduzido na vagina com uma ducha higiênica. O assunto era um tabu, além de ser tratado com descaso até mesmo pela própria comunidade médica. Ironicamente, a sociedade abominava o aborto, porém continuava dizendo que as mulheres seriam traídas se engravidassem, e que o motivo de muita insatisfação de seus parceiros estava relacionado a isso.

A década de 1960 foi marcada por um aumento de mulheres com diagnóstico de falência renal, sepse e até morte pelo uso indiscriminado do Lysol como método contrceptivo. As mulheres eram impulsionadas pelos anúncios tendenciosos do fabricante do produto, o preconceito da sociedade e o medo de perderem seus maridos para outras mulheres.

A historiadora Andrea Tone revelou em seu livro Dispositivos e desejos: Uma história de contraceptivos na América, que higiene feminina era um eufemismo para contracepção. Os “odores e germes” eram uma referência ao cheiro que o esperma deixado na vagina poderia causar, ou seja, a mulher manter seu corpo “livre de germes” significava prevenir a gravidez, assim como “manter seu charme feminino delicado”.

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
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Desde o Ato Comstock de 1873, uma lei federal que classificou como “obscenos” os dispositivos anticoncepcionais ou qualquer informação sobre o assunto, foi terminantemente proibido falar sobre controle de natalidade, embora existisse uma antítese social que insistia que as mulheres deveriam constituir uma família, enquanto o machismo estrutural apoiava a ideia e também a rejeitava, alegando que filhos faziam os homens repudiar as suas esposas.

Sendo assim, uma vez que esses contraceptivos eram caros e difíceis de serem encontrados, o mercado de produtos femininos comercializava tudo sob a premissa de que se tratava de um produto destinado à higiene feminina.

Elas continuam morrendo

(Fonte: Pinterest/Reprodução)
(Fonte: Pinterest/Reprodução)

Milhares de mulheres morreram fazendo o uso de Lysol como “ducha feminina” ou “ducha pós-coito”, como o produto se popularizou entre as mulheres. Aquelas que sobreviveram para contar a história, tiveram que lidar com queimaduras genitais e inflamações severas que, previsivelmente, só aumentaram o repúdio dos homens. Como Tone mesmo especificou em seu livro: “As mulheres literalmente lavavam suas partes íntimas com um constituinte do ácido carbólico bruto, um destilado de carvão e madeira”.

Em 1960, o Food and Drug Administration (FDA) aprovou nos Estados Unidos a pílula anticoncepcional oral, encerrando o uso do Lysol como método contraceptivo. Contudo, a atual cultura arraigada em dogmas religiosos, discursos de moral e juízo de valores, não impede que as mulheres continuem se ferindo e morrendo pelo mundo por terem que recorrer aos métodos clandestinos.

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