Ciência
01/03/2023 às 06:30•3 min de leitura
De tempos em tempos, as notícias sobre trabalho análogo à escravidão — mais de um século depois da Lei Áurea — dominam as manchetes e deixam muitas pessoas chocadas. No fim de fevereiro de 2023, outro caso foi registrado: cerca de 200 pessoas foram resgatadas em tais condições, em vinícolas de Bento Gonçalves, na serra gaúcha.
Os trabalhadores eram contratados por uma empresa terceirizada, que mantinha contrato com várias vinícolas da região para fornecer mão-de-obra durante a colheita da uva.
Alguns dos homens resgatados foram entrevistados pelo G1 e contaram que foram recrutados na Bahia, com promessas de bons salários para um emprego de dois meses no Rio Grande do Sul. Mas, ao chegar, já encontraram condições bem piores que as prometidas: os alojamentos eram sujos e mal iluminados, além de não ter itens básicos, como lençóis e talheres.
Todos os itens, inclusive alimentos, precisavam ser comprados de um mercadinho próximo ao alojamento — fazendo com que os trabalhadores contraíssem dívidas com a empresa. E se os homens falassem em ir embora, eram ameaçados com essas dívidas, além de não terem dinheiro para voltar para a Bahia.
A escravidão moderna é diferente daquela que era legalizada até 1888. Pode-se dizer que ela é disfarçada, uma vez que são prometidos salários aos trabalhadores — porém esses ganhos são corroídos pelas dívidas que as empresas criam para os escravizados. Além disso, existem ameaças e trabalhos forçados, muito além das jornadas permitidas por lei.
O artigo 149 do Código Penal Brasileiro define que o trabalho análogo à escravidão:
"É caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto."
Isso tudo foi observado no caso de Bento Gonçalves de acordo com apurações do G1: os 200 homens trabalhavam das 5h da manhã às 20h, de domingo a sexta-feira, sem descansos e sob forte ameaça, caso fizessem qualquer reclamação. A restrição à circulação e a impossibilidade de quebrar o contrato é outra característica do trabalho análogo à escravidão, nesse caso.
Ou seja, criam-se condições degradantes dentro desse suposto contrato de trabalho para que, na prática, essas pessoas sejam mantidas como escravas — trabalhando muito sem receber.
Fonte: Repositório de imagens NZN
As vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi — ligadas ao caso de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves — emitiram notas se justificando e se eximindo de culpa. Em resumo, as três empresas disseram que desconheciam as condições dos trabalhadores e não concordam com essas práticas criminosas.
Ainda assim, as vinícolas podem ser responsabilizadas pela justiça e obrigadas a indenizar os trabalhadores escravizados. Elas também foram suspensas da Apex Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), até segunda ordem.
Essa lógica de terceirização da responsabilidade é uma das causas da escravidão moderna, segundo especialistas no tema. A maioria dos trabalhos análogos à escravidão acontece em propriedades rurais ou oficinas, que são contratadas por fornecedores, que são contratadas pelas empresas... — são muitas "camadas". Em busca dos lucros, os últimos elos da corrente acabam abrindo margem para o trabalho escravo na ponta.
Tantas camadas de terceirização também facilita para as empresas se eximirem de culpa — e dificulta para os consumidores que querem boicotar essas marcas de suas compras. Isso tudo resulta ainda na impunidade de quem lucra com o trabalho escravo.
Fonte: Repositório de imagens NZN
Outra justificativa para esse problema é a falta de políticas públicas de educação. Tanto para que as pessoas pobres não sejam "presa fácil" para esses recrutadores, quanto para que eles saibam de seus direitos e possam lutar por eles.
No caso de Bento Gonçalves, outros lados do problema ficaram evidentes. Uma entidade que representa o empresariado local justificou a situação pela "falta de mão de obra" e afirmou haver pessoas que não querem trabalhar por causa dos programas assistenciais do governo.
Essa justificativa encontra eco na fala xenofóbica de um vereador de Caxias do Sul, noticiada em 28 de fevereiro. Segundo ele, as vinícolas da região não deveriam contratar "esse pessoal lá de cima", pois eles seriam "preguiçosos" e tais denúncias de trabalho análogo à escravidão seriam um exagero. Ele diz, ainda, que contratar argentinos seria muito melhor, já que eles são limpos e "agradecem pelo emprego".
Essa oposição entre "preguiçosos" e "trabalhadores", sempre com viés racista e xenofóbico, pode ser relacionada à própria cultura da imigração europeia. Vinícolas como a Salton foram fundadas por famílias de origem italiana — e, frequentemente, nós ouvimos que os imigrantes italianos prosperaram no Brasil com "o suor de seu trabalho".
Fonte: Repositório de imagens NZN
A historiadora Carla Menegat explica que os italianos não chegaram na serra gaúcha sem condições, como muitos defendem. De fato, eram regiões que recebiam menos atenção do estado que as capitais, mas os italianos chegavam lá com direito de usufruir das terras com ótimas condições de compra. Em muitos casos, homens negros livres ou os indígenas eram removidos dessas terras para cedê-las aos italianos.
Nesse contexto, esse mito do "esforço próprio" é mais uma ferramenta utilizada para colocar os supostos "preguiçosos" em oposição aos "trabalhadores que prosperaram" — e tentar justificar essa exploração de uns pelos outros.
No fim das contas, os trabalhadores baianos queriam trabalhar. Mas em condições adequadas e não análogas à escravidão.