Estilo de vida
15/04/2023 às 02:00•4 min de leitura
Nascida Geraldine Elizabeth Carmichael, em 1937, em Jasonville, Indiana (EUA), Liz Carmichael tinha tudo para entrar para a história pelos motivos certos se não fossem suas ações e passado escuso.
A década de 1970 nos Estados Unidos foi marcada pelas oscilações — os "choques" — que aconteceram na indústria petrolífera. Uma delas começou em meados de 1973, com o embargo árabe sobre o produto, e outra no final dessa mesma década, com a Revolução Iraniana, que levou à diminuição drástica da oferta de petróleo. Os dois episódios deixaram um rastro de crise que elevou a preços vertiginosos o combustível, ao mesmo tempo que o racionou por todo o país norte-americano.
Em meio a isso, Liz Carmichael teve a incrível ideia de inventar o Dale, o primeiro veículo de três rodas, revolucionário por seu formato e sua capacidade econômica em termos de uso de combustível. E para melhorar, teria um preço muito barato para a indústria da época. A solução parecia até um sonho – e era.
Liz Carmichael. (Fonte: New Times San Luis/Reprodução)
Liz Carmichael caiu nas graças da sociedade americana por seu carisma, visão e estratégia de marketing inovadora, sobretudo em um mercado de venda dominado por homens. Ela era uma mulher de 47 anos, mãe de cinco filhos e, como Joy Mangano, tinha o sonho de entrar para a história com sua invenção.
Em entrevista à People, ela garantiu que lideraria a indústria automobilística "como uma rainha" – e parecia que ela realmente tinha tudo a seu favor. Carmichael teria estudado engenharia mecânica na Ohio State University, onde conheceu Jim, seu marido, um engenheiro estrutural que morreu em 1966 e a deixou viúva com filhos para cuidar. A família então se mudou para a Califórnia, onde ela construiu seu primeiro carro com a ajuda de seu filho de 12 anos.
(Fonte: Oprah Daily/Reprodução)
Carmichael fundou a Twentieth Century Motor Car Company para lançar aos americanos o Dale, seu carro revolucionário que custaria menos de US$ 2 mil e ainda viria acompanhado de um seguro. Assim, ela ficou conhecida como "A Mulher e o Dale". Em todos os canais de mídia em que apareceu, a empresária ganhava cada vez mais a confiança de seus futuros clientes, mas sua entrevista ao The New York Times, o maior jornal daquela época, garantiu milhões de dólares em vendas de um produto que nem existia ainda.
Mas surgiram alguns problemas pelo caminho, a começar que as autoridades do estado da Califórnia, onde era sediada a empresa de Carmichael, proibia esse tipo de pré-venda. Depois, a promessa dela era de que até 1975 ela tivesse 88 mil unidades do Dale rodando – o que poderia ter acontecido, segundo os engenheiros, se o marketing não tivesse superado a produção e Carmichael não tivesse se lançado tanto como uma figura pública a ponto de despertar a desconfiança das autoridades em saber quem era aquela pessoa e de onde vinha.
Esse foi o cadafalso de Liz Carmichael.
(Fonte: Time/Reprodução)
Os agentes do Departamento Federal de Investigação (FBI) investigaram todo o passado de Carmichael e descobriram que ela nasceu Jerry Dean Michael, e que, portanto, era uma mulher transgênero. Antes da transição, ela foi casada quatro vezes, sendo que sua primeira esposa a acusou de deserção por abandonar seus dois filhos enquanto vivia na Alemanha.
Em 1954, a empresária se casou com Juanita, com quem teve dois filhos antes de seu relacionamento terminar dois anos depois. Já em 1958, Carmichael se casou com Betty Sweets depois de quatro semanas de namoro e o relacionamento relâmpago gerou uma filha. Em 1959, a mulher já estava casada com outra pessoa, Vivian Barrett Michael, com quem teve cinco filhos – os únicos que manteve e assumiu mesmo após sua transição.
Em 1960, Carmichael era dona de um jornal e usava as impressoras para produzir notas falsas, mantendo essa prática criminosa até 4 de agosto de 1961, quando foi presa acusada de formação de quadrilha e posse de moeda falsa. Ela fugiu antes da audiência, iniciando uma vida de nômade com sua família, indo de estado em estado ao longo dos anos temendo ser pega, mudando de identidade usando registros roubados e educando os filhos em casa.
(Fonte: WarnerMedia Pressroom/Reprodução)
O repórter investigativo Dick Carlson foi o responsável por expor o passado de Liz Carmichael durante um noticiário ao vivo para milhares de telespectadores — inclusive o fato de ela ser uma mulher trans. Ele deixou claro, ainda que sem provas nenhuma, que ela fez sua transição apenas para fugir dos seus crimes.
No entanto, é bom deixar claro que essa era a narrativa social da época para criminalizar e inviabilizar as pessoas trans da mesma forma que acontecia com homens gays cisgêneros. Carmichael poderia ter assumido qualquer identidade diferente da original se seu intuito era fugir dos seus crimes, bem como ter apostado em qualquer outra transformação de aparência.
A empresária não deixou de trocar de nome conforme fugia de suas responsabilidades perante a Lei. E, ainda que de fato ela tenha sido uma criminosa, sua identidade de gênero em nada tinha relação com isso – mas não foi o que a mídia fez parecer.
(Fonte: Pajiba/Reprodução)
A história toda escandalizou a nação e Carmichael passou a ser caçada e, em vez de seus crimes chamarem atenção, seu gênero tomou o lugar. Quando questionada sobre o interesse das pessoas em sua vida pessoal, ela respondeu: “Qualquer reivindicação à fama que eu tenho, é a de uma produtora de automóveis, não como uma 'artista' de mudança de sexo”.
Liz Carmichael foi considerada culpada por roubo em 1980, mas desapareceu com seus filhos após Vivian se divorciar dela antes da sentença. Oito anos mais tarde, sua história emplacou no programa Unsolved Mysteries, fazendo um espectador ligar para a produção ao reconhecer Carmichael como Kathryn Elizabeth Johnson, vendedora de flores em Dale, no Texas. Ela passou 18 meses em uma prisão masculina, apesar de ser reconhecida como mulher pelo tribunal.
A história de vida de Liz Carmichael terminou em fevereiro de 2004, ao perder uma batalha contra um câncer. Sua trajetória foi retratada no documentário The Lady and the Dale, da HBO.
Para o diretor Zackary Drucker, a história da empresária se manteve tão anônima para a modernidade no que diz respeito à comunidade LGBTQ+ porque tudo associou Liz Carmichael a Jerry Dean Michael, "o homem que se vestiu de mulher para fugir da Lei", e não simplesmente a mulher criminosa que, por coincidência, era transgênero.