Estilo de vida
09/09/2024 às 18:00•4 min de leituraAtualizado em 09/09/2024 às 18:00
Todo mundo sonha em ir para a Walt Disney World, em Orlando, na Flórida. Há muito tempo que o parque temático deixou de ser apenas um parque de diversões, não é para menos que tem a palavra "resort" associada ao seu nome, fazendo dele um verdadeiro ponto turístico em qualquer lugar do mundo.
Os números dizem por si só. Segundo o Departamento de Pesquisa Statista, o parque nos Estados Unidos registrou mais de 17,7 milhões de visitantes em 2023. Um estudo de dados de serviço baseados em localização de visitantes do parque para a atração mostrou que, em 2018, apenas 36,7% dos visitantes vieram de famílias com crianças menores de 18 anos.
Isso mostra como o parque é mais frequentado por adultos do que crianças, resultado de um legado influente de mais de 100 anos de história da marca Disney, que começou com a criação dos Estúdios Disney em 1923, enraizando-se na cultura popular e acompanhando gerações.
Mas tem pessoas que sonham mais do que apenas visitar a Disney World, querem fazer parte dela, portanto, enfrentam processos seletivos rigorosos para trabalhar no complexo. Como o maior empregador do Condado de Orange, o resort emprega uma força de trabalho de cerca de 77 mil pessoas que contribui para a operação e a experiência do visitante de ponta a ponta.
O que poucas pessoas sabem é qual é a verdade por trás das condições de vida dos funcionários da Disney World.
O “Local Mais Feliz da Terra”, como se intitula a Disney World, torna difícil a vida de muitos dos seus funcionários. Esse é o caso, por exemplo, de Gabby Alcantara-Anderson, de 31 anos, que trabalha no complexo na Flórida há quase 10 anos. Em entrevista para o livro Sunbelt Blues: The Failure of American Housing, do professor de estudos culturais da NYU, Andrew Ross, a supervisora de atrações do parque Magic Kingdom mora em uma casa que aluga de um parente e possui um salário, combinado com o de seu marido que também trabalha na Disney, que mal é o suficiente para pagar o aluguel e colocar comida na mesa.
Ela disse ainda que sua situação é melhor do que a de outros colegas de trabalho. Muitos dividem apartamentos de dois quartos com até seis pessoas, dormem em colchões infláveis, sacos de dormir ou em um sofá. Para tornar a vida de cada um mais fácil, eles alternam entre quem fica com a cama em certas noites. Eles usam o mesmo banheiro, suas roupas são armazenadas em sacos de lixo e alguns deles não conseguem fazer a quantidade necessária de refeições diárias por falta de dinheiro.
A imagem da Disney para o mundo precisa refletir equilíbrio, alegria e paixão, a começar pela maneira como os funcionários recebem os visitantes. É um lema na empresa que o prestador daquele serviço precisa aparentar ser tão sortudo quanto quem está podendo desfrutar da experiência Disney.
"A Disney idealmente quer que os visitantes acreditem que os funcionários do parque temático são crianças despreocupadas que fazem esse trabalho por diversão", confessou Alcantara-Anderson.
Essa política primordial para trabalhar na empresa, no entanto, acabou causando danos severos na psicologia de muitos empregados. Ramona Guitérrez, cozinheira de um dos maiores restaurantes do Magic Kingdom, se sentia realizada profissionalmente mesmo tendo dinheiro apenas para pagar um motel repleto de percevejos chamado HomeSuiteHome, sendo que ela quase morreu quando o teto do quarto que alugara desabou sobre sua cabeça. Sua condição obscura de vida parecia pequena perto da honra que era poder oferecer suas longas horas de trabalho à Disney.
Ao final de um turno, após fingirem expressões eternamente felizes, alguns funcionários que Ross entrevistou confessaram que precisam de um tempo para reencontrar seu verdadeiro estado de espírito. “Preciso de 20 minutos para lidar com o quanto estou gritando por dentro de mágoa e raiva”, disse uma operadora da atração Splash Mountain ao escritor.
"É preciso muita força mental para manter essa persona, especialmente quando você não é esse tipo de pessoa ou quando há problemas pessoais em sua vida", observou Alcantara-Anderson. Os clientes também não perdoam. "Frequentemente, recebemos reclamações do tipo: 'Aquele funcionário não me parece muito feliz' ou 'O que há de errado com a magia dela hoje?'".
Em outubro de 2022, os contrários de vários funcionários sindicalizados da Disney expiraram, então eles aproveitaram para reivindicar salários melhores, tendo que enfrentar uma jornada de negociações tensas com o alto escalão da empresa. O Service Trades Council Union (STCU), que representa os interesses dos trabalhadores, pediu um aumento do salário mínimo para US$ 18 por hora (antes os valores ficavam entre US$ 12 e US$ 15), e mais US$ 3 adicionais para aqueles que ganhavam perto desse valor, para acompanhar a inflação.
No mês seguinte, os trabalhadores participaram de uma manifestação para discursar sobre várias condições de trabalho preocupantes, lançando luz sobre os salários baixos em relação aos executivos, custo de saúde, aposentadoria e outras questões. Vale ressaltar que, naquele ano fiscal, a Disney World Orlando Resort gerou uma receita de US$ 40 bilhões.
Abigail Disney, neta do irmão de Walt, criticou o tratamento da empresa aos seus funcionários em uma entrevista que deu em 2019. Ela foi atrás do CEO, Bob Iger, cujos ganhos em 2018 foram de cerca de US$ 65 milhões, 1.424 vezes maior do que o valor ganho por um funcionário médio da Disney. Abigail reforçou que ele deve ser recompensado pelo seu trabalho, mas que não era justo que seus funcionários passassem fome ou não conseguissem moradia digna.
Em resposta aos protestos, a Walt Disney Company apresentou o que chamou de "oferta forte e significativa" que aumentaria os salários iniciais para algumas funções em até US$ 20 por hora, salientando que também haveria possibilidade para as outros alcançarem o mesmo aumento ao longo do tempo (um período de anos).
O STCU argumentou que esse tipo de mudança não seria implementada com a rapidez suficiente para lidar com a inflação e os problemas que os trabalhadores enfrentavam no momento, principalmente com os altos custos de se morar na Flórida. Portanto, a oferta foi recusada.
Ao The Street, o editor geral do The Arena Group, Daniel Kline opinou: "A oferta da Disney colocaria um único trabalhador bem abaixo do custo de vida, enquanto a contra-oferta do sindicato não levaria um funcionário a esse nível".
Kline observou que pedir salários que se aproximem ou excedam ligeiramente o custo de vida em uma determinada região onde os custos tem aumentado constantemente, não parece que o sindicato esteja levando a empresa longe demais. É um pedido justo para se viver com dignidade.
"Uma empresa não pode projetar uma imagem de felicidade e magia enquanto força seus trabalhadores a escolherem entre comida e abrigo”, ressaltou Kline.
Finalmente, em 23 de março de 2023, o STCU chegou a um acordo provisório com a Disney para aumentar o pagamento por hora até o final daquele ano, mais valores em atraso e garantir que, até outono de 2026, eles recebam mais de US$ 20 por hora.
Apesar dessa mudança, a vida de um funcionário da Disney não mudou radicalmente, até porque o aumento no salário não resolveu a crise imobiliária dos Estados Unidos, intensificada pela era pós-pandêmica. Muito pelo contrário, vários trabalhadores começaram a sofrer com proprietários aumentando aluguel após saberem sobre o aumento dos salários da Disney.
“Há uma percepção maluca de que os trabalhadores da Disney estão bem”, reclamou a funcionária Kareem Burrow à Ross.
E isso acontece na mesma proporção que as pessoas acham que quem trabalha lá tem muita sorte ou que "venceu na vida". Afinal, é a Disney, "onde os sonhos se tornam realidade", o que, pelo visto, acontece para poucos.