Artes/cultura
24/01/2020 às 13:56•4 min de leitura
Ao longo dos séculos, a medicina e a ciência encontraram a sua linha de evolução através de experimentos antiéticos realizados em humanos. Quando essa prática ainda não era uma violação de nenhum direito, em meados do século XVIII, os pioneiros médicos se valiam dos corpos de criminosos executados para realizarem os seus estudos, e também exumavam cadáveres de civis de seus túmulos para avaliações póstumas.
Foi principalmente durante a primeira metade do século XX que o governo dos Estados Unidos, Alemanha e Japão otimizaram o desenvolvimento de seus estudos e também de sua artilharia nas costas de populações marginalizadas, como os pobres, doentes mentais, negros e grupos étnicos. Sob pretextos pseudocientíficos e através de programas de exterminação como o MKUltra e a Unidade 731, milhares de civis foram torturados e mortos durante o processo de testes de drogas, armas químicas e biológicas, vírus, epidemias e entre outros. Algumas dessas potências chegaram a isolar pequenas cidades e transformá-las em campos de estudos em massa, liberando no ar testes letais para entendimento do comportamento humano.
Em 1951, logo depois de o Código Nuremberg ser escrito e antes da Declaração de Helsinki, que coíbe toda e qualquer prática de experimentos em humanos nos Estados Unidos, alguns acreditam que o ocorrido no sul da França fez parte do início de um projeto mortal idealizado pela grande potência norte-americana. Já outros, preferem atribui-lo à causas naturais.
A comuna chamada Pont-Saint-Esprit está localizada no sul da França, na região administrativa da Occitânia, no distrito de Gard. No ano de 1951, a cidade provençal sustentava uma população de 4.925 mil habitantes que desfrutavam de uma vida praticamente idílica, à sombra da segurança e da calmaria do local.
Numa quinta-feira do dia 16 de agosto de 1951, o carteiro Leon Armunier pedalava pela cidade e realizava as suas atribuições matinais, quando foi tomado por muita náusea e uma severa confusão mental. Segundo o homem, ele teve a sensação de começar a encolher e viu o corpo pegar fogo a partir dos pés enquanto tentava se desvencilhar de cobras que se enrolavam em seus dois braços.
Leon Armunier perdeu o controle de sua bicicleta e caiu. Gritando, ele foi encerrado numa camisa de força quando deu entrada no hospital. Alguns minutos mais tarde, centenas de pessoas entraram em colapso, tão igual ou pior que ele.
Pont-Saint-Esprit foi assolada por uma onda de alucinações severas. As pessoas urravam pelas ruas, se debatendo, arrancando as próprias roupas, se atirando no rio ou de janelas. Veículos perderam o controle e passaram por cima de pedestres, invadiram casas e o comércio. As ruas se encheram de cidadãos descontrolados que pareciam compartilhar do mesmo pico de histeria. Os que não se atracavam com socos e objetos perigosos, ficavam estáticos no lugar, como numa espécie de transe, olhando para o nada, às vezes chorando, sorrindo ou babando.
Alguns jornalistas reportaram que em 48 horas, os episódios pareciam se intensificar em boa parte dos pacientes do hospital local onde visitaram. Um trabalhador identificado como Gabriel Validire, gritava há dois dias que estava morto e que sua cabeça era feita de cobre e o estômago estava cheio de minhocas. As crianças eram as mais afetadas, com crises de insônia e uma desorientação que fazia boa parte delas bater a cabeça contra a parede sem parar. Um garoto de 11 anos chamado Charles Granjhon, tentou estrangular a sua mãe enquanto essa dormia.
No dia 24 de agosto, um homem internado pulou do segundo andar do hospital após gritar que era um avião. Ele quebrou as duas pernas com o impacto, porém ainda foi capaz de se levantar e correr por mais 50 metros até que fosse contido pela equipe médica.
O surto durou uma semana e o resultado foi cerca de 500 pessoas hospitalizadas em total estado psicótico. Cerca de 10 mortes foram computadas e outras 300 pessoas foram parar em sanatórios, de onde não se recuperaram ou saíram nunca mais.
Em setembro de 1951, enquanto o mundo ainda conspirava sobre o que havia acontecido, cientistas declararam através da British Medical Association (BMJ), um dos jornais mais conceituados sobre medicina do mundo, que o surto havia se dado por conta do ergotismo.
Também conhecido como Fogo Sagrado ou Fogo de Santo Antônio, o ergotismo é um envenenamento causado pela ingestão de produtos contaminados pelo esporão-do-centeio, um fungo parasita que ataca a planta e é conhecido por possuir propriedades altamente alucinógenas, agindo diretamente no sistema nervoso central, por isso foi usado na produção de LSD. Os sintomas são depressão severa, confusão mental e perca de memória, espasmos, cianose e ainda podendo culminar em coma e também em morte.
Os médicos especialistas escreveram que o parasita teria se alojado na farinha que produzia o pão local e por isso centenas de pessoas foram afetadas.
Muito embora a explicação estivesse fundamentada em bases sólidas, nem todos acreditaram nessa possibilidade, principalmente por se tratar do apogeu da Guerra Fria. Junto a isso, as alegações do BMJ se baseavam nas descobertas de bioquímicos que haviam sido enviados à cidade pela Sandoz Chemical Company, que ficava na Suíça. Dentro desse grupo de especialistas estava o Doutor Albert Hoffman, o homem responsável por sintetizar o LSD pela primeira vez no mundo, em 16 de novembro de 1938. Na época, poucos cientistas sabiam da existência da droga, da mesma forma que quase ninguém, exceto alguns funcionários da Sandoz, sabiam que a empresa trabalhava em segredo com a CIA e que, poucos anos antes, havia feito visitas à Pont-Saint-Esprit.
Mais tarde, um jornalista que investigava os experimentos de controle de mente realizados em humanos durante a Guerra Fria, descobriu que a empresa Sandoz fornecia à CIA carregamentos da droga sintética para que fossem usados em testes confidenciais nos Estados Unidos e na Europa, no mesmo ano em que o programa MKUltra foi fundado.
Em mais uma das conclusões, o jornalista investigativo Hank P. Albarelli Jr, alegou que o surto de 1951 em Pont-Saint-Esprit teria sido parte de um experimento conjunto do Exército Americano com a CIA, dirigido pela unidade do Doutor Frank Olson, a Divisão de Operações Especiais, que ficava em Fort Detrick. Anos depois, em 1975, foi descoberto após uma exumação do corpo do médico bacteriologista, responsável por conduzir os ensaios na cidade francesa e que morreu dois anos após o ocorrido, que ele não havia se suicidado se lançando do décimo andar do Hotel Statler. Frank Olson tinha cortes e sinais de tortura pelo corpo, o que acabou voltando os holofotes para a possibilidade de um homicídio executado pelo Governo, sustentado pelo acordo milionário que a CIA oferecera à família em 1953 para que não investigassem a morte do médico.
Entretanto, num contraponto disso tudo, o professor Steven Kaplan publicou em seu livro em 2008 sobre o incidente de Point-Saint-Esprit, que não havia a possibilidade do surto em massa ter sido efeito do ergotismo ou do LSD. De acordo com o autor, a contaminação pela ergotamina não afetaria apenas uma saca de grãos em uma padaria. O LSD, por outro lado, causaria sintomas semelhantes, mas que não se encaixavam aos descritos, além de que ele não teria sobrevivido às fortes temperaturas do forno à lenha. Outros, no entanto, afirmaram que o alucinógeno poderia ter sido inserido nos pães após o cozimento.
De qualquer forma, o governo francês nunca fez nenhum esforço para investigar o que realmente aconteceu naquele fatídico dia 16 de agosto de 1951, conhecido como Le Pain Maudit (O Pão Maldito), embora tenha acontecido com o seu povo e em seu território.