Ciência
15/05/2020 às 14:00•3 min de leitura
No livro Ensaio Acerca do Entendimento Humano, o filósofo John Locke aponta que "todos nascemos como uma tábula rasa", dando a entender que o ser humano nasce sem nenhum entendimento ou percepção das coisas. Isso sugere que a educação, o convívio familiar, o afeto e as questões socioeconômicas são fundamentais para formar o caráter de uma criança.
Em 29 de setembro de 1992, a HBO lançou o documentário Child of Rage (A Ira de um Anjo, em tradução), que chocou o mundo ao apresentar a história de uma garotinha de 6 anos chamada Beth Thomas. Na produção, foram registradas gravações feitas pelo o psicólogo da menina, Dr. Ken Magid, durante as sessões de terapia.
Os espectadores ficaram horrorizados com a violência, o ódio, a extrema apatia e o desejo declarado que a garota tinha de assassinar, com crueldade, os pais adotivos e o irmão. A maioria das pessoas estava em contato pela primeira vez com uma criança que apresentava sintomas de psicopatia. Mas por que Beth era assim? O que aconteceu com ela? É possível recuperar algo quebrado em tão pouco tempo?
Elizabeth Thomas perdeu a mãe biológica quando tinha apenas 1 ano, deixada com o irmão Jonathan sob a custódia do pai. O homem abusou sexualmente das duas crianças por 6 meses até que alguns médicos descobriram o que estava acontecendo.
As crianças foram resgatadas dessa situação de vulnerabilidade. Jonathan estava imundo de fezes e urina dentro de um berço cercado por caixas de leite azedo. Beth não tomava banho há semanas, tampouco comia. Em meados de 1984, eles foram adotados por Jim e Julie Tennent, que fizeram essa escolha após tentarem ter filhos por 8 anos. Na época, Beth tinha 2 anos, e Jonathan, 7 meses.
Os irmãos significavam a realização de um sonho para o casal, que fazia de tudo para proporcionar o melhor da vida para eles, principalmente dando o afeto que Beth e Jonathan jamais receberam. As crianças foram cercadas de atenção, amor, presentes, mimos e conforto.
Tudo parecia um sonho até que os pesadelos de Beth entraram no caminho — literalmente. A garota começou a acordar todas as noites se queixando de "um homem que caía sobre ela e a machucava com uma parte dele". Foi depois disso que o comportamento dela se alterou completamente.
Em momento algum, os Tennents foram alertados sobre as circunstâncias nas quais as crianças chegaram à adoção. A assistente social alegou que elas eram saudáveis e livres de qualquer trauma psicológico, portanto Jim e Julie estavam completamente no escuro sobre o que estava acontecendo.
Quando o órgão de adoção foi confrontado pelo casal, os funcionários alegaram que não forneceriam o histórico dos infantes devido às leis de confidencialidade. Era irônico, uma vez que o bem-estar das crianças deveria ser a prioridade. Os pais não teriam sofrido tanto se soubessem o mínimo do que tinha acontecido com as crianças antes de se tornarem seus filhos. Outros na posição deles poderiam não ter encontrado a saída ideal para aquele pesadelo.
Beth começou a exibir raiva e descontrole absurdos. Ela xingava, fazia gestos obscenos e gritava até ficar vermelha. A garota chegou a jogar o irmão do berço para o chão e pisar tão forte na cabeça dele que foram necessários pontos para fechar os ferimentos. Jonathan era beliscado, mordido e socado por Beth quando os pais não estavam por perto. A própria menina relatou que molestou o garoto; ela também se masturbava em público.
Desesperada e sem saber a origem de toda aquela agressividade, Julie passou a trancar Beth no quarto à noite, para garantir a segurança da família, principalmente porque várias vezes ela foi pega tentando esfaqueá-los. No tempo em que estava solta, Beth caçava animais para torturá-los, como uma maneira de esvaziar aquele ódio incontrolável. No documentário, quando foi interrogada sobre os seus animais de estimação, ela respondeu: "Eu os prendi com estacas para que morressem".
A situação tornou-se insustentável para os Tennents; então, em 1989, eles decidiram procurar um psicólogo.
Dr. Ken Magid foi o responsável pelas conversas com Beth. A princípio, exibindo um comportamento malicioso, ela confessou que machucaria os pais adotivos esfaqueando-os até a morte.
Então, o profissional organizou uma verdadeira jornada às origens psicológicas da garota. No decorrer das sessões de terapia, ela falou dos abusos sexuais que sofreu do pai biológico e expressou toda a sua aversão por pessoas. Ela acreditava que até mesmo o médico a machucaria, por isso o repudiava.
Beth foi diagnosticada com Transtorno de Apego Reativo (RAD), um grave distúrbio caracterizado pela dificuldade de criar vínculos sociais ou afetivos, frequentemente causado por situações de vulnerabilidade e abuso enfrentadas antes dos 5 anos. Porém, esse foi só um dos fatores responsáveis para ela desenvolver a psicopatia infantil.
Durante a internação, a garota expressou que entendia a consequência dos seus atos, mas não expressou remorso por isso. Ao longo de muitos anos de terapia intensiva, ela apresentou culpa genuína por ter causado dor aos pais e ao irmão. Depois, foi submetida a conviver sob um conjunto de regras rigorosas proposto por um especialista em RAD que a criou por muito tempo longe do afeto diário dos pais.
Beth conseguiu se sair bem na escola, socializando e fazendo amizades, inclusive se formou em Enfermagem na Universidade do Colorado. Atualmente, ela viaja o mundo dando palestras sobre a própria história e declara que superou o passado.
Para muitos especialistas, a garota, que virou símbolo de estudo, apenas aprendeu a reprimir os instintos psicopáticos, uma vez que a doença não tem cura, ou seja, a consciência dela apenas finge bem. Para outros, Beth é apenas o resultado de como a mente humana reage ao trauma e à negligência.