Ciência
27/10/2021 às 14:27•5 min de leitura
Os fãs de novelas receberam com pesar a notícia de que, na noite desta terça-feira (26), o escritor Gilberto Braga faleceu. Ele tinha 75 anos e sofria com uma infecção sistêmica, em decorrência de uma perfuração no esôfago. Braga deixa o marido, Edgar Moura Brasil, com quem estava há mais de 40 anos, além de milhões de admiradores de sua obra — incluindo eu, que agora faço essa singela homenagem em forma de texto.
Há quem diga que Gilberto Braga — ou apenas Giba — foi o melhor autor de novelas que a TV brasileira já viu. Eu concordo, porque o estilo de Giba me encantava: ele retratava aquela elite finíssima da zona sul carioca, mas sempre com uma certa ironia. Seu texto é repleto de tiradas bem-feitas, que sempre nos deixam surpresos, quando não arrancam risadas.
Até em suas últimas novelas, que já não eram tão boas quanto as de antigamente, o texto e o bom humor de Giba ainda brilhavam. Além disso, as entrevistas dele eram as melhores entre os autores de novela: se a obra era fraca ou ia mal em audiência, ele mesmo falava. Humildade que era rara nesse meio.
(Fonte: O Globo/Reprodução)
As novelas da Globo retratam demais a elite carioca, mas Giba era quem fazia isso com mais destreza, na opinião do público e da crítica — talvez porque ele próprio fosse parte dessa elite. Ele mostrava os podres e as ironias dos ricaços sem a menor cerimônia, escancarando a hipocrisia de quem acha que dinheiro compra tudo, como Odete Roitman (Vale Tudo, 1988).
Entre os “cronistas da elite carioca” Giba e Maneco, especialmente, dá para diferenciar os dois: Maneco parece escrever suas cenas como se o cotidiano de todo mundo fosse desse jeito. Já Giba parecia saber que estava mostrando a elite para espectadores pobres ou classe média. Além disso, enquanto Maneco escreve tudo no Leblon, Giba preferia Copacabana (não que isso faça tanta diferença assim).
Os personagens arrivistas, que querem ficar ricos mais que tudo, eram outra marca registrada do autor. Vilões como Maria de Fátima (também de Vale Tudo), Laura “Cachorra” (Celebridade, 2003), Olavo e Bebel (Paraíso Tropical, 2007) estão entre os mais inesquecíveis das novelas.
Giba também tinha sensibilidade para discutir temas sérios: relações difíceis entre pais e filhos (Dancin' Days e Água Viva, por exemplo), racismo (Corpo a Corpo, 1984), herança entre companheiros do mesmo sexo (Vale Tudo), corrupção (várias novelas) e homofobia (Insensato Coração e Babilônia). Suas tramas policiais, com vários “quem matou?”, também marcaram os fãs do gênero telenovela.
É difícil resumir a trajetória de Gilberto Braga, pois foram quase 50 anos de carreira — mas nós vamos tentar. Gilberto Tumscitz (Braga era sobrenome da mãe) nasceu em 1º de novembro de 1945, no Rio de Janeiro. Após se formar em Letras na PUC-RJ, trabalhou como crítico de teatro e cinema no jornal O Globo.
A primeira chance como roteirista veio em um episódio da série Caso Especial, em 1973, com a adaptação do clássico A Dama das Camélias. Logo depois, ele assinou sua primeira novela, Corrida do Ouro, com o já experiente Lauro César Muniz, e ajudou Janete Clair a finalizar sua novela Bravo!, quando ela foi chamada para substituir a censurada Roque Santeiro, às pressas.
Isso foi o passaporte para seus primeiros trabalhos como autor solo: a adaptação de Escrava Isaura, às 18h, que se tornou sucesso no mundo inteiro. Com mais um sucesso às 18h, Dona Xepa (1977), ele foi direto para o horário mais prestigiado da TV brasileira, a novela das 20h.
Já estreou com um clássico: Dancin' Days. A história mostrava a disputa das irmãs Júlia, uma ex-presidiária boa, e Yolanda, uma golpista ambiciosa, pelo coração da filha Marisa — gerada por Júlia, mas criada por Yolanda. As cenas de discoteca fizeram a novela mania no país todo, lembrada até hoje (“Abra suas asas, solte suas feras”).
Ironicamente, Giba disse achar seu texto fraco nessa produção, mas o sucesso foi grande mesmo assim.
Em Água Viva (1980), Giba fez seu primeiro “quem matou?”, um recurso que apareceria em quase todas as suas novelas seguintes. A história era centrada em Lígia (Betty Faria), quase uma anti-heroína, que lutava para criar seus filhos e queria se casar com um homem rico para garantir isso. A cena em que Lígia desce o cacete na amiga fura-olho que roubou seu marido se tornou antológica: “Você tocou no meu nome!”
Em Brilhante (1981), sua novela seguinte, ele tratou da homossexualidade mesmo no contexto da censura. A audiência não foi boa, mas cenas perdidas da novela que a gente encontra no YouTube comprovam que o texto era bom, ainda assim. Em Louco Amor (1983), Giba voltou a encontrar o sucesso com uma história maniqueísta e uma vilã terrível (Renata Dumont, vivida por Tereza Rachel). Ele achava que essa é sua pior novela. (Eu gostaria de ver para dar uma opinião, mas é difícil achar cenas por aí.)
Corpo a Corpo (1984) é quase esquecida, mas tem uma das histórias mais intrigantes que a TV brasileira já mostrou: uma engenheira boa, mas ambiciosa (Eloá/Débora Duarte), faz um pacto com um homem misterioso que lembra o capeta. Então sua vida vira de cabeça para baixo e a gente fica a novela toda tentando adivinhar de onde aquele homem veio (spoiler: é tudo uma tramoia de um cara de carne e osso que odiava um ricaço). Essa é uma novela que o Globoplay tem que disponibilizar logo!
O ápice da carreira veio com aquela que é considerada a melhor novela de todos os tempos por muita gente: Vale Tudo, de 1988. A história da filha que vende a casa da mãe para entrar em uma família da elite movimentou o Brasil. Vale Tudo é boa porque todos os personagens são bem-feitos e a história sempre anda. Não tem um capítulo, dos 204, em que não aconteça algo intrigante e que não tenha cenas ótimas, com bom texto.
Giba poderia muito bem ter se aposentado depois de Vale Tudo, mas quis ir ainda mais longe na novela seguinte: O Dono do Mundo, de 1991. Márcia, a mocinha, é enganada por um homem rico, vai para a cama com ele, seu noivo se mata e sua vida é destruída. Então, ela fica com sede de vingança e trata de subir na vida para derrubar o vilão, Felipe.
O próprio Giba sabe quando tudo deu errado nessa novela: em uma cena em que Felipe quase desiste de Márcia, mas ela acaba batendo na porta do vilão, para se entregar. “Fiquei 8 meses tentando fazer o público gostar da mocinha”, disse, em entrevista. Hoje, a novela é considerada um clássico, por seu texto sempre impecável.
Também é preciso destacar as minisséries de Gilberto Braga: Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992) estão entre as melhores da televisão, retratando muito bem essas épocas tão marcantes da história do país em dramas tipicamente “gilbertianos”.
Mesmo nos anos 2000, com mais idade, Giba não parou de trabalhar: Celebridade (2003) é considerada uma de suas melhores obras, com um ótimo “quem matou” e as brigas entre Laura e Maria Clara, em cenas muito bem escritas. Paraíso Tropical (2007) está sendo reprisada no Viva e é uma novela redondinha, em que sempre acontece alguma coisa. Também rendeu a clássica cena do “casamento primaveril em pleno outono”, de Bebel (Camila Pitanga).
Em Insensato Coração (2011), Giba tentou se reinventar, criando uma novela com várias tramas paralelas iniciadas e terminadas a cada bloco de capítulos. Não funcionou tão bem, porque a história principal (que se mantinha) era fraca. Ainda assim, era uma novela gostosa de assistir e movimentou a audiência da época. Gilberto dizia que essa era sua melhor novela.
Justamente sua última novela, Babilônia (2015), foi a pior. A mocinha era chata, as vilãs faziam um jogo de gato-e-rato que entediou o público. Porém, mesmo nessa novela, era possível ver o bom texto e a crítica às elites, com o prefeito corrupto Aderbal (Marcos Palmeira). Há ótimas cenas, como Consuelo (Arlete Salles) assumindo o mandato de Aderbal, no final. Sempre bem franco em suas entrevistas, Giba admitia que estava perdendo para a novela das sete da época.
Nos últimos anos, mesmo com Mal de Alzheimer (o que não havia sido divulgado pela família), o autor continuava trabalhando. Ele entregou duas sinopses de novas novelas para a Globo e uma delas havia sido rejeitada recentemente. Os fãs torcem para que, em respeito à memória de Braga, o canal reavalie essas decisões — e disponibilize mais obras desse gênio, mesmo que no streaming.
Uma pessoa que cria obras como Anos Dourados, Anos Rebeldes, Escrava Isaura, Vale Tudo, O Dono do Mundo, Dancin' Days, Celebridade e Paraíso Tropical só pode ser um gênio. Descanse em paz, Giba!