Artes/cultura
25/08/2022 às 04:14•4 min de leitura
Dono de um jeitinho alegre, samba no pé e carisma inigualável, Zé Carioca, um dos nomes mais icônicos dos quadrinhos clássicos, está completando 80 anos desde sua primeira aparição ao público na animação da Disney Alô, amigos, de 1942.
Criado no início da década de 1940, o primeiro personagem brasileiro dos Estúdios Disney marcou gerações e ainda se mantém relevante aos novos leitores e amantes de história em quadrinhos. O amado papagaio foi criado por Walt Disney para, na sua visão norte-americana, ser a personificação do povo brasileiro: feliz, simpático, preguiçoso, malandro e festeiro.
Alô, amigos!, filme de estreia de Zé Carioca. (Fonte: Disney)
Foi para a divulgação do novo filme, Fantasia (1940) — parte da chamada “era de ouro” do estúdio —, que Walt Disney e seu time de animadores e desenhistas chegaram ao Rio de Janeiro. O time ficaria no país entre os meses de agosto e setembro de 1941, seguindo com a turnê para Buenos Aires, na Argentina, logo depois.
No entanto, a divulgação não era o único motivo para a extensa viagem pela América Latina. Walt Disney também estava interessando em criar novos personagens, dessa vez inspirados pela cultura latino-americana, para viverem junto da clássica Turma do Mickey. A ideia inicial que os desenhistas Franklin Thomas e Norman Ferguson apresentaram, inclusive, foi a de um tatu-bola.
Walt Disney desembarca no Brasil. (Fonte: DIsney)
Enquanto estava pelo Brasil, porém, a equipe se encontrou com inúmeros célebres brasileiros, como Heitor Villa-Lobos e José Carlos de Brito e Cunha, e concluiu que o papagaio seria o animal ideal para representar nossa fauna e nosso povo. O encontro com Paulo da Portela, sambista que marcou a cena carioca ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, teria supostamente sido o mais marcante para Walt Disney na construção final de seu personagem.
A turnê de Walt Disney tinha mais uma motivação para acontecer
No ano seguinte, em um filme que mostrava as belezas da América Latina para Pato Donald, o já citado Alô, amigos, nascia Zé Carioca, o primeiro personagem brasileiro da Disney. O papagaio vestia paletó, gravata e chapéu, acompanhado do famoso “jeitinho brasileiro”: malandro e alegre. Em uma época em que o samba era considerado criminoso e marginal, a imagem de Zé Carioca, personificação do carioca sambista, foi orgulhosamente escolhida para representar o Brasil no mundo todo.
Walt Disney curte sua viagem ao Rio de Janeiro. (Fonte: Disney)
Somada a isso, a turnê de Walt Disney tinha mais uma motivação para acontecer. Dizem que política está presente em todos os âmbitos da nossa vida, e na de Zé Carioca não é diferente. Apesar de ser um personagem criado para crianças, a viagem foi encorajada pela Política da Boa Vizinhança, idealizada pelo presidente Franklin Roosevelt para angariar aliados latino-americanos aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.
Como dito anteriormente, Zé Carioca representava tudo que Walt Disney mais amou sobre o povo brasileiro. José Carioca, como é conhecido internacionalmente, foi vivido pelo cavaquinista paulista (que ironia!) José do Patrocínio Oliveira em seu filme de estreia, logo conquistando o público com seu gingado e humor. Ao lado do representante brasileiro, o filme também conta com a participação do Gauchinho Voador, representante da Argentina, e Panchito, personagem mexicano.
"O material que existia era muito estereotipado"
Zé Carioca apareceu novamente dois anos depois ao lado de Carmem Miranda no filme “Você já foi à Bahia?”, que tem música composta por Ari Barroso e João de Barro. Além disso, Zé participou de alguns episódios das séries para televisão Disneyland: Two Happy Amigos (1960) e Carnival Time (1962).
No entanto, foi nas histórias em quadrinhos que Zé Carioca realmente brilhou. Inicialmente desenhado por Bob Grant e Paul Murry, com roteiro de Bill Walsh, para a página semanal de tiras dominicais, Silly Symphony, Zé era um personagem que escapava de seus problemas com seu “jeitinho” malandro. Em algumas histórias, Zé Carioca era descrito vivendo no Rio de Janeiro por meio de golpes. Foi nessas páginas também que os primeiros personagens coadjuvantes nasceram: Rosinha, sua namorada, seu pai Rocha Vaz, Nestor e Zé Galo, antagonista de Zé.
Zé Carioca e sua "turma" no Baile dos Caloteiros, um dos estereótipos brasileiros do personagem. (Fonte: Disney)
Essas primeiras tirinhas foram trazidas ao Brasil em fevereiro de 1943 pela revista Globo Juvenil. Depois disso, ele apareceu em diversas histórias nos quadrinhos do Pato Donald. Porém, o personagem era trazido à vida por estrangeiros, fazendo com que o humor e a representação fossem, muitas vezes, estereotipados e não apelativos ao público brasileiro.
Vêm aí o “Jovem Zé”, contando a história do papagaio antes de ele se tornar o que é hoje
Na opinião do roteirista Gerson Teixeira, que já escreveu 1.444 páginas de histórias do Zé, “quando Jorge Kato e outros cartunistas fizeram os primeiros roteiros originais, eles tiveram que dar uma boa ‘temperada’. O material que existia era muito estereotipado e, aos poucos, Zé foi virando um personagem que realmente transmitia nosso jeitinho.”
Mas foi somente na década de 1970 que isso aconteceu, quando a Editora Abril começou a publicar histórias próprias de Zé Carioca regularmente, agora com um time totalmente brasileiro. “Os roteiristas acabaram melhorando a imagem de Zé Carioca para se adaptar ao Brasil. Foi aqui que ele se tornou brasileiro”, conta Moacir Rodrigues Soares, cartunista das histórias de Zé Carioca desde 1973.
As revistinhas atingiram seu auge entre as décadas de 1970 e 1990, e Zé Carioca e sua turma eram um fenômeno popular. De toda a produção de HQs da Disney pela Editora Abril, um terço contou com a presença de Zé. Mas assim como tantas outras mídias, as histórias em quadrinhos também foram afetadas pela ascensão dos computadores e celulares. “Quando eu deixei a Editora Abril, o Zé Carioca vendia 70 mil revistas mensalmente. De repente, esse número caiu para 7 mil”, segundo Moacir.
Mas não precisa se preocupar! Desde 2020, a Editora Culturama, em parceria com a Disney, assumiu o papel de continuar contando as histórias de Zé Carioca — Moacir, inclusive, nos deu um spoiler que vêm aí o “Jovem Zé”, contando a história do papagaio antes de ele se tornar o que é hoje.
Zé Carioca retorna aos quadrinhos pela Editora Culturama. (Fonte: Culturama)
Além disso, tem sido feito um trabalho para mudar a imagem malandra do personagem. Se antes ele tinha um caráter duvidoso, apesar de cativante, nas novas histórias “ele é otimista, alegre e, apesar de estar ‘ferrado’, ainda tem esperança que tudo vai dar certo. Bem como um brasileiro.” De acordo com Gerson, que escreve as novas HQs, Zé Carioca, finalmente, representa o que foi e o que é o brasileiro.