Festa dos Tolos: a celebração medieval que passou a assombrar a Igreja

24/08/2022 às 10:362 min de leitura

Para adicionar mais um capítulo a estranha realidade que era a Idade Média, de tradições a cultura, a Festa dos Tolos aconteceu no final do século XII e início do século XIII, na França, sempre em 1º de janeiro, e tinha o objetivo de inverter os papeis dos funcionários da Igreja, ou de qualquer um que estivesse em posição de poder com relação ao outro.

Esse ritual eclesiástico se baseava no princípio bíblico previsto em Coríntios 1:27, da Bíblia cristã, de que Deus escolheu as loucuras do mundo para envergonhar os sábios. Desse modo, a celebração foi considerada um dia de libertação, quando tudo poderia ser feito sem o temor do julgamento ou excomungação.

Um momento de liberdade

(Fonte: Atlas Obscura/Reprodução)(Fonte: Atlas Obscura/Reprodução)

Como a celebração se concentrava na troca de lugares, o bispo ou papa eram reeleitos, podendo ser até um dos coroinhas ou membros do coro da igreja, que por um dia inteiro poderia mandar e desmandar com poderes plenos sobre vários aspectos da instituição.

Apesar do quão catastrófico isso possa significar na atualidade, naquela época era tudo encarado em tom de brincadeira, com textos alegando que se tratava de um momento divertido e muito festivo. Os padres vestiam máscaras com feições monstruosas na hora do expediente, dançavam vestidos de mulher, se pintavam e proferiam palavras e canções que causariam seu banimento das funções eclesiásticas. Todo o tipo de comida proibida era ingerida sem medo, bem como jogos considerados pecaminosos e seculares eram disputados sem vergonha ou medo de represálias.

Nos dois séculos seguintes, entre 1160 e 1172, a Festa dos Tolos se expandiu para cerca de 20 catedrais e igrejas colegiadas no norte da França, florescendo em algumas cidades por mais de três séculos antes de sucumbir gradualmente às repressões do período de Reforma.

(Fonte: Look and Learn/Reprodução)(Fonte: Look and Learn/Reprodução)

No livro Sacred Folly, o estudioso Max Harris traçou a história da celebração em três locais diferentes da França, e ressaltou que não conseguiu encontrar nenhum relato de desordem, apenas temores distantes de pessoas que achavam que algum dia a festa poderia sair do controle ou deslegitimar o poderio da Igreja.

No entanto, tudo o que aconteceu foi uma reafirmação do sentido bíblico presente na passagem de Coríntios de que Deus ama a todos, mesmo aqueles que estão em uma posição inferior. 

Isso é especificado de maneira mais literal o possível no livro O Corcunda de Notre Dame, do escritor Victor Hugo, quando Quasímodo é arrebatado pelas festividades e coroado “Rei dos Tolos”.

O medo

(Fonte: World4/Reprodução)(Fonte: World4/Reprodução)

Conforme o tempo foi passando, é provável que a celebração tenha se tornado cada vez mais inadmissível pela maneira como acontecia pelas ruas, especificamente nas áreas mais pobres da sociedade, onde as pessoas costumavam manifestar comportamentos considerados "libidinosos, promíscuos e blasfemos".

A secularização chegou com mais força na primeira metade do século XV, quando houve uma série de ataques mais ostensivos à Festa dos Tolos, proibida por membros da Igreja durante o Concílio Ecumênico de Basileia, em 1435; depois na Pragmática Sanção de Carlos VII da França, em 1438; e, finalmente, em uma carta emitida em 1445 pela Faculdade de Teologia da Universidade de Paris.

Apesar disso, a festa só cresceu fora das igrejas, criando regras e tradições. De acordo com Harris, a repressão da festa em muito teve a ver com a falta de senso de humor e o medo por parte das pessoas em posição de poder em ter sua autoridade questionada durante uma inversão de valores — ainda que fosse de mentirinha.

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