Artes/cultura
07/03/2023 às 06:00•2 min de leitura
Toda vez que uma matéria sobre trabalhadores resgatados de situações degradantes começa a circular, nós lemos e ouvimos o termo "trabalho análogo à escravidão". Com isso, surge uma dúvida muito relevante: se as pessoas estavam trabalhando de forma forçada, sem receber um salário, por que não chamar isso, simplesmente, de "escravidão"?
Na realidade, existem motivos para tipificar esse crime como "trabalho análogo à escravidão" e não somente "trabalho escravo". O principal deles é a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, após décadas de luta dos movimentos abolicionistas.
Acreditar que trabalho não pago é sinônimo de escravidão é um erro comum. Mas, como o historiador Fernando Horta explicou recentemente em suas redes sociais, as tipologias das formas de trabalho precisam ser compreendidas historicamente.
Ao longo da história humana, diversas formas de trabalho sem salário existiram e continuam existindo, sem que todas elas configurem escravidão. O trabalho voluntário ou doméstico, por exemplo, não têm remuneração e não configuram escravidão. Por outro lado, alguns escravos recebiam pagamentos por seu trabalho, inclusive aqui no Brasil.
Os escravos "tacheiros", que eram responsáveis por partes importantes da produção de açúcar, recebiam pagamento quando faziam um bom trabalho. Em outras fazendas, os escravos tinham direito de plantar em pedaços de terra e vender o produto nas cidades, ficando com a grana.
Acontece que, além de trabalhar sem salário e forçadamente, os escravos eram propriedade de seus senhores. Eles não eram cidadãos por conta própria, com direitos, mas sim um "bem" — que uma pessoa possuía e poderia tratar como quisesse. Tudo permitido por lei.
Em jornais anteriores a 1888 era comum ver escravos sendo anunciados como mercadorias: falando dos dentes, braços, capacidade de trabalho. E os escravos podiam ser vendidos ou herdados, pois eram coisas e não pessoas. Eles também não podiam escolher seu trabalho, trocar de emprego ou reclamar dos maus tratos, pois eram propriedade de seus donos.
É claro que o processo de desumanização e agressões sofrido pela população negra no Brasil foi muito além disso. Mas isso só era possível porque a lei permitia que alguns seres humanos fossem propriedade de outros. Essa é a principal característica da escravidão: propriedade.
Podemos debater os defeitos das leis abolicionistas no Brasil — afinal, elas geraram diversos outros problemas para a população negra, que foi jogada à própria sorte, sem compensações pelos séculos de exploração. Mas para esse artigo, o que realmente importa é que a Lei Áurea não permite mais que uma pessoa tenha outro ser humano como propriedade.
No caso dos das vinícolas do Rio Grande do Sul, revelado em fevereiro de 2023, as empresas não poderiam vender ou repassar as pessoas como herança. Na verdade, elas nem poderiam fazer nada do que fizeram, para começo de conversa... É por isso que elas serão investigadas e poderão sofrer consequências legais.
É fato que as pessoas foram expostas à condições degradantes e absurdas — trabalho forçado e exaustivo, sem devido salário, com torturas e ameaças. Porém, como não existe propriedade e respaldo legal às ações, o termo mais correto é "trabalho análogo à escravidão". Na prática, a condição é a de um escravo, mas há diferenças conceituais importantes.
É claro que essa conceituação não faz nenhuma notícia de trabalho análogo à escravidão ser menos absurda. A ideia, aqui, é apenas explicar o porquê desse termo, que pode ser curioso para muitas pessoas que acompanham as notícias.