Artes/cultura
07/09/2023 às 06:30•5 min de leitura
A vida após a morte é um tema central em praticamente todas as religiões, mas uma delas, o espiritismo, consegue ter uma relação mais íntima com esse mundo, considerando que os vivos podem até se comunicar com quem já morreu.
O espiritismo é uma religião de origem francesa, criada pelo pedagogo Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, em 1857. Naquela época, o mundo dava grandes avanços no entendimento de fenômenos naturais, como a eletricidade.
Kardec queria trazer essa racionalidade ao debate sobre a fé — e aparentemente os espíritos queriam o mesmo, pois teriam escolhido o pedagogo para escrever uma obra que teria grande impacto na França, mas se tornaria parte fundamental da cultura religiosa no Brasil: o Livro dos espíritos.
Allan Kardec. Reprodução: UFJF
Nesse livro, Kardec usa de sua didática para organizar mensagens psicografadas em reuniões mediúnicas que ele realizava ou acompanhava. O livro traz 501 perguntas e respostas sobre o mundo em que vivemos e o espiritual.
A Igreja Católica não gostou nada do que leu na obra de Kardec e condenou a nova fé. Mas séculos depois, o maior país católico do mundo se tornaria, também, o maior país espírita do planeta — e tudo isso graças a um nome muito popular: Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier.
Reprodução: Senado
Ao contrário de Kardec, Chico não era um homem estudado. De origem pobre, Chico nasceu na cidade mineira de Pedro Leopoldo e ficou órfão de mãe aos cinco anos. Sem condições de cuidar dos filhos, o pai de Chico e de seus oito irmãos os entregou a conhecidos.
Assim, Chico foi viver com uma madrinha, que o agredia constantemente. Segundo ele, isso ocorria porque ela era “obsidiada”, ou seja, influenciada por espíritos maus. Chico também tinha muitos problemas de saúde, como dificuldades de visão e respiratórios. Além disso, ele dizia que já se comunicava com os mortos desde os quatro anos, o que lhe causava ainda mais problemas com a sua madrinha.
Na infância, ele foi aconselhado espiritualmente por um padre católico chamado Sebastião Scarzelli. O religioso tentava ajudar o menino a entender os fenômenos espirituais que o atormentavam, mas sob a ótica católica, que demonizava os espíritos.
Aos 17 anos, Chico passou a se dedicar ao espiritismo, aceitando sua mediunidade e psicografando cartas dos mortos para os vivos. Embora tenha escandalizado a sociedade local da época, Chico também começou a ganhar uma legião de seguidores.
Segundo dados da Federação Espírita Brasileira (FEB), existiam cerca de 15 mil centros espíritas no país em 2019. A FEB é a entidade que organiza os centros espíritas Kardecistas no Brasil desde 1884.
Segundo o censo de 2010, 3,8 milhões de brasileiros seguiam a religião naquele ano — isso é quase o dobro do número de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que contava com dois milhões de fiéis no mesmo ano, segundo o IBGE.
Ainda de acordo com a FEB, o número de pessoas simpatizantes à doutrina pode chegar a 30 milhões de brasileiros. Esses simpatizantes são pessoas que mesmo professando outra fé vão aos centros espíritas, consomem cultura espírita ou nutrem simpatia pela religião.
Os relatos de pessoas que recebiam cartas dos mortos se espalharam e jornalistas passaram a desconfiar da mediunidade de Chico Xavier. Muitas investigações foram feitas, mas nada se encontrou contra o médium.
Em um dos casos mais famosos, a dupla de jornalistas David Nasser e Jean Manzon foi ao centro comandado por Chico, no ano de 1944, mas deram nomes falsos e se passaram por estrangeiros. Eles publicaram na revista O Cruzeiro uma dura reportagem contra Chico.
Contudo, o médium teria dado a eles livros espíritas que continham dedicatórias que citavam seus nomes verdadeiros. Eles leram as dedicatórias dias após a publicação da reportagem, percebendo que Chico Xavier sabia que eles eram repórteres, mas optaram por ficar em silêncio.
A reportagem, apesar de crítica, tornou o médium famoso nacionalmente.
Em 1971, Chico foi convidado para ser entrevistado pelo programa Pinga-Fogo, da TV Tupi. Naquela época, ele já era conhecido nacionalmente. Na entrevista, ele falou de temas sensíveis e tabus para a época, como homossexualidade, suicídio e reencarnação. Foi um recorde de audiência que atingiu 75% dos televisores brasileiros. Chico foi entrevistado por jornalistas e religiosos das mais diversas vertentes.
Na entrevista, Chico manteve o mesmo tom diplomático e respeitoso com as outras religiões, algo que foi marcante em sua vida. Ele jamais atacou outras fés ou buscou converter as pessoas.
Isso também o ajudou a ser respeitado por apresentadores de TV famosos, como Gugu Liberato e Hebe Camargo, que sempre o entrevistavam ou citavam o médium em seus programas, ainda que fossem católicos. Gugu, inclusive, encerrava o seu Sabadão Sertanejo, líder de audiência, com alguma frase de Chico.
Em 1976, um crime escandalizou o Brasil: o assassinato do jovem Maurício. O principal suspeito era o seu melhor amigo, José Divino, que tinha 18 anos. A investigação concluiu que José havia matado o amigo e o acusou formalmente. Ele foi a julgamento.
Todavia, o juiz viu incoerências na investigação e aceitou que uma prova apresentada pela defesa fosse anexada ao processo: uma carta do próprio morto psicografada por Chico Xavier.
Na carta, o jovem contava com detalhes o que teria ocorrido, afirmando que a arma disparou acidentalmente. José Divino foi inocentado. O caso ganhou repercussão mundialmente, sendo uma rara situação em que um morto teria interferido no julgamento de um vivo.
Em 2010, o pai do menino Maurício, José Henrique, deu uma entrevista à revista Sou Mais Eu e disse ser grato a Chico. “Aquela mensagem foi muito dolorosa para mim. Mas graças a ela, e ao trabalho do Chico Xavier, passei por várias transformações pessoais. Restabeleci a comunicação com o meu filho morto, apoiei a absolvição do José Divino e passei a acreditar em vida após a morte”, contou.
Baseado em livro de Chico Xavier, filme Nosso Lar levou teve 4 milhões espectadores. Fonte: Reprodução: IMDB
Outro fato curioso sobre Chico Xavier é que, ao contrário de algumas outras figuras religiosas, ele não acumulou riquezas. Ele vendeu mais de 50 milhões de livros e todo o dinheiro foi revertido em ações sociais.
A qualidade do texto surpreendeu o mercado editorial, pois Chico não era um homem que teve oportunidade de estudar. A doutrina espírita explica isso. Na verdade, Chico teria apenas psicografado as obras. Os verdadeiros autores, todos creditados nos livros, eram os espíritos. O mais famoso deles era Emanuel, o mentor pessoal do médium e o acompanhou em toda a sua vida.
Por duas vezes, os brasileiros elegeram Chico Xavier como o maior brasileiro de todos os tempos. A primeira vez foi em 2006, quando a revista Época perguntou aos internautas quem deveria receber esse título. A publicação sugeriu 50 nomes, mas o de Chico não estava entre eles. Havia a possibilidade de os votantes sugerirem um nome e dessa forma, o médium acabou vencendo a disputa com 36% dos votos. Ayrton Senna ficou em segundo lugar.
Em 2012, o SBT fez um concurso para eleger o mais importante brasileiro da história. Chico venceu novamente, superando nomes como Santos Dumont e Dom Pedro II.
Em 2021, seu nome foi inscrito no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.
O médium passou a não ter medo do dia do seu falecimento quando os espíritos lhe contaram que sua morte ocorreria em um dia de grande felicidade para o povo brasileiro.
Aos 92 anos, Chico faleceu (ou desencarnou) no domingo em que o Brasil se tornou pentacampeão de futebol. Já debilitado, o médium teria perguntado a seu filho adotivo se o Brasil havia vencido. Ao saber que sim, ele teria rezado um Pai-Nosso e morrido, cumprindo a profecia.
Nem todo mundo que acredita no mundo dos espíritos é espírita. A escritora e médium Zíbia Gasparetto, por exemplo, considerava-se “espiritualista”, que é uma categoria que abarca qualquer ritual que acredite na comunicação espiritual.
O médium João de Deus, condenado por estupro, também não era considerado espírita kardecista e sua Casa Dom Inácio de Loyola não era ligada à Federação Espírita Brasileira (FEB).
No início deste ano, o médium Wellington Wagner de Souza, diretor do Grupo Espírita da Prece e da Casa Espírita João Urzedo, local em que Chico atuou por anos e psicografou parte de suas obras, fez críticas ao rumo da doutrina.
"O Espiritismo, não só em Uberaba, mas em várias partes do Brasil, está perdendo o norte; está perdendo a referência de simplicidade, humildade, desapego e o cunho moral que é ensinar o correto, o justo e ajudar as pessoas a se tornarem pessoas de bem".
"Estão inserindo em casas espíritas reiki, cromoterapia, apometria, entre outros elementos que não existem no Espiritismo. Além disso, vejo que tem muito espírita que não gosta de pobre e é apegado a bens materiais", lamentou Wellington de Souza, que também é médium, em entrevista ao jornal O Estado de Minas.