Artes/cultura
12/12/2023 às 14:00•3 min de leitura
No auge do século XVII, a Bíblia era a base da lei e da sociedade ocidentais, sobretudo na Europa. Além de ser a principal fonte dos ensinamentos religiosos — no que diz respeito ao Cristianismo —, também era a base moral e ética ao fornecer um conjunto de princípios que refletiam os ensinamentos bíblicos, tudo frequentemente relacionado à interpretação das escrituras. Os líderes políticos usavam a Bíblia para justificar a maioria de suas ações e decisões, tanto quanto punir e condenar, invocando os preceitos bíblicos como forma de fundamentar a autoridade governamental e as leis.
Por isso houve um esforço imenso das autoridades durante o século XVII para traduzir a Bíblia para diferentes idiomas, tornando-a acessível a um público cada vez mais amplo, para que a palavra de Deus e seus princípios pudessem ser absorvidos pelas pessoas, moldando ainda mais a sociedade.
Um exemplo disso foi a Bíblia King James Version (KJV), mais conhecida como Bíblia dos Pecadores, produzida em um período de grande importância histórica, durante o reinado do rei James I da Inglaterra, de 1603 a 1625. A tradução da Bíblia chegou em um momento propício, quando a Inglaterra passava por uma série de tensões religiosas e sua tradução visava unificar as diferentes facções religiosas da época.
Assim, em 1631, o rei Carlos I da Inglaterra ordenou que cópias da Bíblia fossem banidas da Europa devido a um erro de digitação.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A KJV marcou seu tempo por carregar um estilo literário distinto e influente, por isso sua tradução foi meticulosa, feita para preservar toda a beleza, relevância e a majestade da linguagem bíblica, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da língua inglesa.
A contagem oficial é de que a KJV contém 783.137 palavras, com 3.116.480 caracteres, então imagina dar conta de tudo isso em uma época em que a impressão, tradução e versão eram feitas de modo manual? Para os impressores do século XVII, publicar esse tipo de obra era um trabalho extremamente estressante e tedioso, portanto, fadado a erros – muitos erros.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Mas isso não podia acontecer com a obra "mais importante da humanidade, da sociedade e do governo" daquela época. Qualquer tipo de erro significava que todos esses pilares poderiam entrar em conflito ou, pior, em colapso. Os impressores reais da Grã-Bretanha de 1631, Robert Barker e Martin Lucas, descobriram isso da pior maneira possível, após obter a permissão do rei Carlos I para imprimir uma edição da Bíblia do Rei James.
A produção rendeu aproximadamente mil volumes do livro sagrado, no entanto, após uma inspeção minuciosa do produto final, eles descobriram um erro escandaloso. No livro do Êxodo 20:14, onde há a lista dos Dez Mandamentos, o “não” ficou de fora em “não cometerás adultério”.
Rei Carlos I. (Fonte: Biography/Reprodução)
A gravidade do problema repercutiu rapidamente, com o rei Carlos I sendo o primeiro a expressar sua extrema indignação com o erro, assim como o arcebispo da Cantuária, Jorge Abade. Os impressores Barker e Lucas foram convocados diante do monarca e receberam cada um uma chicotada, foram multados em 300 libras (o equivalente a um mês de salário na época) e tiveram sua licença como impressores cassada.
As consequências do erro foram tão graves que Barker chegou a ser enviado à prisão dos devedores após se enroscar em dívidas por não poder exercer mais sua profissão, onde acabou morrendo em meados de 1643.
O monarca exigiu que cada cópia da "Bíblia Perversa" fosse caçada e destruída. Seus homens cumpriram a missão com excelência, tanto que apenas 16 cópias restaram. Sete estão na Grã-Bretanha, sete na América do Norte, uma na Nova Zelândia e outras são de propriedade privada. Inclusive, uma das cópias foi vendida em 2015 na casa de leilões Bonhams, em Londres, por mais de 31 mil euros.
Ao longo dos anos, análises feita por estudiosos encontraram um segundo erro de digitação de Barker e Lucas. Em Deuteronômio 5:23, “a grandeza de Deus” é substituída por “a grande farsa de Deus”.
Devido à natureza muito aparente desse segundo erro, muitos acreditam que houve sabotagem e, provavelmente, da parte de Bonham Norton. Ele era um ex-parceiro de Barker que havia se endividado; portanto, para ganhar o contrato real milionário, teria inserido deliberadamente os erros para incriminar o colega.