Ciência
17/01/2024 às 14:00•4 min de leitura
“A violência contra as mulheres é endêmica em todos os países e culturas”. Assim definiu o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebryesus, sobre um problema que se arrasta há séculos. De acordo com dados da OMS, uma em cada três mulheres, aproximadamente 736 milhões delas, é submetida a violência física ou sexual por um parceiro íntimo, ou a abuso sexual por um não parceiro, sendo que esse número permaneceu praticamente inalterado na última década.
Estendendo a análise, uma em cada quatro mulheres entre 14 a 24 anos que estiveram em um relacionamento já experimentaram algum tipo de violência pelo seu parceiro. Ainda, 6% das mulheres em todo o mundo relatam ter sido abusadas sexualmente por alguém que não seja seu marido ou parceiro. No entanto, devido às taxas altas e subnotificação dos casos, é provável que o número real seja significativamente maior.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Só nos Estados Unidos, em média 463.634 jovens de 12 anos ou mais são alvo de estupro e agressão sexual a cada ano, como informa a RAINN (Rape, Abuse and Incest National Network, ou "rede nacional sobre estupro, abuso e incesto" em tradução livre), a maior organização antiviolência sexual dos EUA.
Tedros defende que é necessário existir esforços profundos e sustentados por parte dos governos, comunidades e indivíduos para mudar atitudes prejudiciais, melhorar o acesso a oportunidades e serviços para mulheres e meninas, e promover relacionamentos saudáveis e mutuamente respeitosos.
Durante as últimas três décadas, as mulheres se tornaram mais propensas a denunciar estupros e tentativas de estupro à polícia. Em 1960, Franca Viola se tornou a primeira mulher italiana a se recusar a se casar com seu estuprador.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
O princípio social de “salvar a honra de uma mulher” está recheado de machismo estrutural na própria construção da palavra — e ainda mais em sua aplicação. Na Itália da década de 1960, essa ideia era muito forte devido à influência da Democracia Cristã, um partido político de orientação democrata-cristã cujo alinhamento político-ideológico coincidia com os valores conservadores de centro-direita, que dominava todos os aspectos da sociedade e política no pós-guerra italiano.
O governo cristão tinha influência direta da Igreja Católica, que promovia ideias tradicionais não só de como deveria ser uma família “ideal” italiana, como também na maneira como a mulher deveria se mover na estrutura social.
Além de terem seu papel resumido a serem apenas donas de casa e mães, também tiveram o direito de ir e vir limitado por leis e políticas, como a Lei Basaglia, de 1978. Para se divorciar, os cônjuges precisavam aprovar a culpa um do outro, como adultério, abandono ou comportamento inadequado. As mulheres, como é de se esperar, foram as mais afetadas pela dificuldade de provar a culpa do parceiro porque eram colocadas em situações desvantajosas, uma vez que as exigências para provar a culpa muitas vezes favoreciam apenas aos homens.
Franca Viola. (Fonte: Forum Outerspace/Reprodução)
Nascida em 9 de janeiro de 1948, em Alcamo, na Sicília, em uma família de agricultores, Franca Viola cresceu sob essa e as demais restrições à vida digna de uma mulher na Itália. Por volta dos 15 anos, em 1963, ela chegou a namorar por seis meses Fillipo Melodia, na época com 23 anos, um aspirante a criminoso ligado à máfia italiana, antes de pôr um fim na relação.
Só que Melodia nunca aceitou o término mesmo ficando afastado de Viola durante o período de um ano que ela passou na Alemanha. Ele esperou a volta da jovem para tentar uma reconciliação, mas foi rejeitado. Com isso, Melodia recorreu a uma alternativa violenta, tendo em mente que a lei italiana o resguardaria.
Em 26 de dezembro de 1965, ele esperou até que o pai de Viola saísse de casa para sequestrá-la com a ajuda de 15 amigos. Por mais de uma semana, o homem a manteve prisioneira em uma fazenda remota, onde a estuprou repetidamente.
O plano de Melodia era fazer de Viola uma mulher "desonrada", pois perdera a virgindade antes do casamento, sendo obrigada por lei a se casar para "recuperar" a virtude. Mas a jovem disse que não tinha intenção de realizar o desejo de Melodia e que, além disso, o processaria por violência carnal, intimidação e sequestro.
(Fonte: Rejected Princesses/Reprodução)
Segundo a lei, o crime seria desculpado se o casal se casasse em um "casamento reparador", em que o homem era perdoado por sua violência e a honra da mulher era restaurada. E isso não era apenas uma tradição informal, mas uma exceção explícita no código penal italiano. O artigo 544 equiparava o estupro a um crime contra a moralidade pública e não a um delito pessoal.
Assim que liberada pelo ex-namorado, Viola levou o seu caso ao tribunal e processou Melodia por todos os crimes mencionados, atraindo atenção internacional. A publicação The New York Times escreveu uma matéria paternalista sob a manchete: “Nenhum admirador tira vantagem de Franca”, enquanto multidões especulavam ao redor de debates sobre a conduta da jovem e o julgamento.
(Fonte: Mashable/Reprodução)
A narrativa pública afetou os pensamentos e objetivos de Viola sobre o assunto, enquanto era descrita como "gentil, magra e bonita" pelas reportagens nos jornais. Não há dúvida que a repercussão do caso tenha contribuído para a condenação de Melodia, que recebeu uma sentença de 11 anos de prisão.
Apesar disso, o artigo da lei segundo o qual um estuprador poderia extinguir seu crime se casando com a vítima só foi abolido em 1981, sendo que a violência sexual se tornou crime contra a pessoa (e não contra a moralidade pública) apenas em 1996, após o fim da Democracia Cristã. Em 1976, Melodia foi solto e banido da Sicília por seu relacionamento com a máfia. Dois anos depois, ele foi encontrado morto a tiros em Modena, também na Itália.
(Fonte: Il Riformista/Reprodução)
Em dezembro de 1968, aos 21 anos, Franca Viola finalmente se casou com Giuseppe Ruisi, um interesse romântico desde sua infância. Mesmo após três anos do encerramento de um dos casos que movimentou a política e sociedade italiana, Ruisi precisou solicitar uma licença para o porte de arma de fogo para proteger sua família das ameaças que recebiam.
Apesar de o então presidente da Itália, Giuseppe Saragat, e o papa Paulo VI terem expressado publicamente solidariedade pela coragem de Viola e abençoado a união do casal, ainda assim se tratava de uma sociedade forjada em um forte conservadorismo. A jovem serviu de símbolo apenas a uma pequena parcela que tentava combater o patriarcado e garantir mais direitos às mulheres naquela época.
Viola nunca fez parte do ativismo e foi isso que a cineasta Marta Savina ressaltou no curta-metragem que fez sobre a história da mulher, atualmente com 75 anos. Ela quis mostrar como Franca Viola continuou sendo um modelo para a causa da qual fez parte, mas não advogou, e também como aliados masculinos a ajudaram a responsabilizar outros homens por assédio e violência de gênero durante o processo.