Ciência
24/04/2023 às 13:00•2 min de leitura
Um relato publicado no canal PopSci+ da revista americana Popular Science levantou uma questão recorrente sobre os traumas e outros sofrimentos vividos por aves em cativeiro. Será que, dentro da nossa arrogância humana, podemos nos atrever a interpretar as emoções de seres com memórias de longo prazo muitas vezes melhores que as nossas?
O sujeito da análise foi uma cacatua nascida nas ilhas Molucas, na Indonésia, chamada Harpo. Internado no abrigo de aves Midwest Avian Adoption & Rescue Services (MAARS), na cidade de St. Paul nos EUA, Harpo não é o que podemos chamar de "cara legal". Ele foi rejeitado pelo seu primeiro guardião e até por um santuário de aves no Texas depois de matar vários colegas pássaros e ferir diversos voluntários humanos.
De acordo com a publicação, em uma tarde calma há muitos anos, a diretora-executiva da MAARS, Galiena Climperman, estava tentando relaxar junto com Harpo, coçando-lhe carinhosamente a cabeça, quando o psitacídeo começou a falar. “Eu odeio esse pássaro”, disse ele em voz alta e clara. E repetiu a frase mais duas vezes.
O MAARS fornece lar vitalício para psitacídeos maltratados e abandonados.
Ao ouvir o desabafo dito com veemência por Harpo, Climperman especulou que a frase já havia sido ouvida pela cacatua antes, provavelmente em circunstâncias desagradáveis, que lhe causaram sofrimento. Ao repetir aqueles sons, certamente Harpo não estava "falando", mas sim trazendo à tona alguma dor que permaneceu em sua memória.
“Estou hesitante em dizer, porque não tenho nenhum respaldo científico sobre isso, mas acho que ele provavelmente estava elaborando algumas coisas”, disse a ativista de direitos animais à PopSci+. Baseada em sua experiência com os psitacídeos abusados e abandonados no MAARS, ela lembra que, embora as emoções desses colegas emplumados não tenham sido estudadas a fundo, a sua sofisticação cognitiva é notável.
Os etólogos funcionam como consultores dos guardiões de aves de estimação.
Autora de um dos poucos artigos científicos sobre traumas em psitacídeos, a psicóloga americana Gay Bradshaw – conhecida por diagnosticar elefantes órfãos com transtorno do estresse pós-traumático – entende que os papagaios e seus parentes atendem aos requisitos para o distúrbio.
Em sua pesquisa, Bradshaw descobriu que as profundas angústias das aves em cativeiro já começam no nascimento. Diferentemente dos psitacídeos nascidos na natureza, que recebem cuidados dos pais ainda dentro do ovo, aqueles gerados para serem vendidos como souvenires (ainda que para tutores bem-intencionados), começam suas vidas em total isolamento, sendo alimentados por sondas.
Evoluídos para viver em grandes grupos barulhentos, esses bichos (de estimação?) resumem muitas vezes suas solitárias vidas a uma gaiola, esperando a volta do dono. Depois de viver nove anos no abrigo, Harpo fez seu "último voo" em 2021. Já não era mais aquela ave problemática: afável, corria para cumprimentar as pessoas. Curiosamente, ninguém mais o ouviu dizer "odeio esse pássaro".