Ciência
17/05/2024 às 20:00•5 min de leituraAtualizado em 17/05/2024 às 20:00
Em 15 de setembro de 1947, o Japão ainda estava procurando o caminho para lidar com os efeitos devastadores do bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki quando o tufão Kathleen os surpreendeu. Com ventos de 120 km/h, equivalentes a um furacão de categoria 1, a tempestade atingiu a província de Kanagawa, ao sul de Tóquio.
Os danos do tufão, no entanto, ficaram restritos às cidades ao longo da costa. O problema mesmo foram as inundações induzidas pela precipitação do Kathleen. Entre 300 e 800 mm de chuva foram derramados na bacia do rio Tone em apenas dois dias, de 13 a 15 de setembro, causando a maior cheia já observada da história do país. Ao norte e leste de Tóquio, diques e aterros romperam com a quantidade de água, destruindo mais de 303 mil edificações e causando a morte de quase 4 mil pessoas.
Dez anos mais tarde, em 1958, o tufão Ida atingiu Kamogawa, na província de Chiba, e choveu cerca de 400 mm em uma semana, principalmente em Tóquio. Foi a maior precipitação desde o início dos registros, em 1876.
Em todo o Japão, as chuvas causaram inundações ao longo de vários rios, como Kano e Meguro, destruindo aldeias e causando 1.900 deslizamentos de terra, dos quais 786 foram na área de Tóquio. A capital sofreu com quedas de energia generalizadas que interromperam o sistema de transporte, sendo que mais de 520 mil casas foram inundadas pelo país, matando 1.269 pessoas, gerando um prejuízo de mais de US$ 50 milhões.
O Japão só tomou uma medida eficaz, no entanto, após a passagem do tufão Vera, no ano seguinte ao tufão Ida, responsável por mais de 3 milhões de propriedades inundadas, 39 mil feridos, 5 mil mortos e 1,6 milhão de pessoas deslocadas.
Em uma tentativa de mitigar os problemas, o Japão construiu o maior e melhor sistema contra enchentes do mundo.
O problema do Japão com inundações é histórico, uma vez que 75% de sua geografia é composta por regiões montanhosas, com montanhas que se estendem ao longo das principais ilhas: Kyushu, Shikoku e Honshu, sem contar a presença de rios e o clima que propicia chuvas intensas durantes certas estações, bem como os tufões devastadores que moldaram a história japonesa.
Apesar de a região de Tóquio não ser considerada montanhosa, ela está localizada na ilha de Honshu, no leste do Japão, que possui baixa altitude e é conhecida por abrigar 107 rios, incluindo o rio Sumida, que atravessa a cidade. O processo de urbanização, a extração indevida de água e a industrialização na região contribuíram para o assoreamento de alguns rios e, consequentemente, fez com que algumas regiões afundassem mais rápido, expondo a cidade a uma maior vulnerabilidade a enchentes.
Os japoneses sempre estiveram cientes de seus pontos fracos geográficos e principalmente da severidade das chuvas, por isso tomaram algumas providências ao longo do tempo – ainda que não exatamente efetivas. Em 1896, foi aprovada a primeira Lei do Rio, que exigia que diques fossem construídos ao longo das margens dos rios e canais sinuosos para que a água fluísse diretamente para o mar. O trabalho foi concluído só em 1930, mas pouco fez para evitar as inundações devastadoras que o Japão sofreu na segunda metade do século XX.
O tufão Vera foi determinante para que o governo do Japão investisse em um plano de proteção contra inundações que fosse realmente efetivo. Em 1993, foi elaborado o ambicioso Canal de Descarga Subterrâneo Externa da Área Metropolitana (MAOUDC), também conhecido como G-Cans, considerada a maior instalação de desvio de água subterrânea do mundo.
Eles chamam o G-Cans de “catedral de Saitama” ou até mesmo de "panteão japonês" não é à toa. Após 13 anos de obras, concluídas em 2006, e mais de US$ 2 bilhões investidos, a instalação está localizada a aproximadamente 32 km do centro de Tóquio, sob Kasukabe, uma cidade na província de Saitama.
O sistema de túneis de concreto e tanques de água pressurizada possui 50 metros de profundidade e 6,3 quilômetros de extensão, e conecta cinco enormes pilastras de coleta. Cada reservatório possui cerca de 93 metros de profundidade e 31 metros de diâmetro, o suficiente para conter só em água uma Estátua da Liberdade inteira.
O complexo é encarregado de redirecionar o excesso de água de cinco rios de pequeno e médio porte a um canal de água em toda Saitama para o rio Sumida fora das bacias dos rios Nakagawa e Ayase. Os diques construídos nas margens desses rios transportam o excesso de água para esses cilindros subterrâneos. Uma vez lá, o sistema de quatro bombas descarrega gradualmente a água para o rio Sumida. O G-Cans suporta 14 centímetros de chuva em um período de 48 horas e pode drenar as águas de inundação em uma velocidade de até 200 metros cúbicos por segundo.
De 2006 a 2019, as autoridades japonesas estimam que o projeto evitou mais de U$ 1 bilhão em destruição por inundações. Durante a passagem do tufão Hagibis, em outubro de 2019, que despejou chuva na bacia do rio Nakagawa a uma taxa de 8,5 cm em 48 horas, o G-Cans desviou cerca de 12,18 milhões de metros cúbicos de água de inundação, o equivalente a mais de 4.800 piscinas olímpicas. Com isso, o sistema reduziu o número de casas inundadas na bacia hidrográfica do rio em 90% e evitou danos estimados em US$ 1,76 bilhão.
Apesar da proporção e eficácia do projeto, governos locais e engenheiros do Estado estão trabalhando a todo o momento para prever o próximo grande desastre e aprimorar o que construíram para evitá-lo, visto que o aumento da intensidade e frequência das tempestades nos últimos anos está testando seus limites.
Afinal, o nível médio global do mar deve subir 2 metros até 2100, tornando perigosa a vida nas regiões que ficam abaixo do nível do mar. A área metropolitana de Tóquio é uma das mais densas do mundo, com cerca de 37 milhões de pessoas em 13.500 quilômetros quadrados de terra, sendo que cerca de 1,5 milhão de habitantes vivem nas denominadas “zonas de zero metro”, que ficam abaixo do nível do mar e estão se expandindo à medida que a terra na região afunda.
Em 2022, o governo do Japão lançou o Projeto de Resiliência de Tóquio, estimado em mais de US$ 96 bilhões, voltado para fortalecer a infraestrutura da capital que afunda constantemente, contra desastres naturais e aqueles causados pelo homem, tendo as inundações como uma das cinco ameaças mais urgentes.
Aproximadamente US$ 38 milhões do financiamento do plano serão destinados ao aumento da infraestrutura da área metropolitana de Tóquio, como a expansão do sistema de esgoto para conter o escoamento das chuvas, a construção de comunidades em terrenos mais elevados e a duplicação da capacidade dos reservatórios subterrâneos.
Segundo Vinod Thomas, pesquisador associado sênior do Instituto de Estudos do Sudeste Asiático em Cingapura e especialista em resiliência climática, os desastres de inundações e tempestades aumentarão acentuadamente. Muito embora o Japão esteja mais preparado em adaptação, a equação climática está em um compasso tão acelerado que planos como o G-Cans envelhecem mais rápido do que se espera. A luta do homem contra o cenário que propiciou se torna cada vez mais difícil.
O atual plano do G-Cans pode comportar um século de inundações de escala única, mas como ter certeza disso se a Agência Meteorológica Japonesa estima que até o final do século XXI, as chuvas no Japão podem aumentar em 10%, podendo chegar a 19% durante o verão?