Estilo de vida
21/09/2024 às 18:00•2 min de leituraAtualizado em 21/09/2024 às 18:00
Voltaire, o famoso escritor e filósofo francês do século XVIII, é lembrado por suas sátiras e críticas sociais afiadas. No entanto, poucos conhecem um episódio peculiar de sua vida: ele bebeu sangue fresco de touro. O motivo? Refutar uma crença antiga que atravessou séculos — a de que o sangue de touro era um veneno mortal. Em seu Dicionário Filosófico, publicado em 1764, Voltaire descreve esse experimento inusitado, que tinha como objetivo desmentir uma lenda que teve origem na Grécia Antiga.
Essa crença, popularizada por filósofos como Aristóteles e médicos como Nicandro de Cólofon, afirmava que o sangue de touro coagulava rapidamente na garganta, levando à asfixia fatal. "Se um homem, em sua loucura, provar o sangue fresco de um touro, ele cairá pesadamente no chão, dominado pela dor", escreveu Nicandro no século II a.C. A descrição — embora aterrorizante — nunca foi apoiada por evidências científicas modernas, e Voltaire, sempre cético, decidiu testar a veracidade da alegação.
A ideia de que o sangue de touro era letal persistiu por séculos, repetida por filósofos e médicos da Grécia e Roma antigas. O naturalista romano Plínio, o Velho, por exemplo, especulava que quanto mais feroz o animal, mais rápido seu sangue coagulava, uma tentativa de justificar essa crença antiga. Figuras históricas como o comandante grego Temístocles e até o lendário Rei Midas foram retratados como tendo se suicidado ao beber sangue de touro, reforçando o mito.
Essas crenças, no entanto, não eram universais. Voltaire observou que os camponeses franceses consumiam sangue de boi regularmente, especialmente na forma de morcela. Ele mesmo relatou que, após consumir o sangue fresco, não sofreu nenhuma das terríveis consequências descritas pelos antigos. Pelo contrário, brincou que o sangue não fez mais mal a ele do que o sangue de cavalo fazia aos tártaros, que o bebiam regularmente, ou que a morcela faz aos franceses todos os dias, “especialmente quando não é muito gordurosa”.
Mas por que essa crença perdurou tanto tempo? Em 1993, o estudioso Kenneth Kitchell ofereceu uma explicação interessante em seu artigo "Morte pelo Sangue de Touro: Uma Explicação Natural". Kitchell sugeriu que o "sangue de touro" mencionado em textos antigos poderia, na verdade, ser um apelido para uma planta venenosa, talvez uma com cor avermelhada e perigosa para o gado. Ele apontou plantas como a tanásia, a heléboro negro e a cicuta-dos-prados, todas conhecidas por envenenar animais.
Outra teoria intrigante sugere que o "sangue de touro" poderia se referir ao realgar, um mineral vermelho e altamente tóxico à base de arsênico, amplamente utilizado na antiguidade. O realgar tem uma conexão histórica com a Pérsia, o que poderia explicar por que muitos relatos de mortes por "sangue de touro" estão ligados a essa região. As descrições dos sintomas do envenenamento por realgar, de fato, se assemelham muito às descrições de Nicandro sobre os efeitos do sangue de touro.
Voltaire, com seu ceticismo característico, provou que o sangue de touro em si não era mortal, ao menos não da forma como era descrito. Seu experimento, além de ser um exemplo de curiosidade científica, serve como um lembrete de que muitas crenças antigas foram perpetuadas sem questionamentos críticos. Como ele mesmo escreveu após sua experiência: “Temístocles certamente não morreu por causa disso”.
Embora não saibamos ao certo qual era o verdadeiro "sangue de touro" dos antigos, o episódio mostra a importância de questionar e investigar. Afinal, como Voltaire demonstrou, nem sempre as histórias que ouvimos — mesmo as mais antigas — são tão confiáveis quanto parecem.