Ciência
06/10/2022 às 09:02•3 min de leitura
Em 6 de janeiro de 1709, grande parte da Europa acordou e se deparou com um inferno branco gerado por um frio de -48 °C e metros e metros cúbicos de puro gelo que chegaram a soterrar cidades inteiras. Com tudo cristalizado, de animais ao pão, o resultado foi uma fome que matou cerca de 200 mil pessoas em 1 ano.
A primeira seca que devastou o sertão Nordestino no Brasil, em 1877, matou de fome 400 pessoas por dia ao longo de 2 anos, gerando aproximadamente 119 mil mortos, em um dos capítulos mais perturbadores da nossa História.
Entre 1916 e 1927, as instabilidades entre os chefes militares durante o período da Era dos Senhores da Guerra, na China, mataram 6 milhões de camponeses de fome.
Essas calamidades podem parecer as piores que a humanidade já enfrentou tendo a fome como instrumento de dizimação, mas é necessário incluir nessa lista a Grande Fome de 1315.
(Fonte: The Spector Australia/Reprodução)
Como observou o historiador americano Henry S. Lucas, fome e pestilência são dois fenômenos que aconteceram com frequência nas páginas da história da Europa durante a Idade Média. Apesar disso, o que tornou tão marcante a catástrofe da fome de 1315, que durou 3 devastadores anos, arrasando dos Pireneus à Itália, é que seu ciclo foi o que ficou mais bem registrado, não se perdendo ao longo dos séculos.
O que aconteceu naquele ano foi o excesso de chuva, muito diferente do que veríamos acontecer durante a onda de seca que destruiu o nordeste brasileiro em 1877 e causou danos em toda a região equatorial do globo.
Entre os anos de 900 e 1300, o aumento na radiação solar e a diminuição na atividade vulcânica da Terra, que promovem o aquecimento, gerou a era do Período Quente Medieval (PQM), elevando as temperaturas globais e beneficiando, principalmente, a Europa, onde tudo floresceu, dos grãos às novas cidades.
Foi nesse ínterim que a população europeia mais que dobrou, visto que as fazendas conseguiam produzir mais alimentos e as pessoas começaram a contornar doenças com mais facilidade devido ao clima.
(Fonte: Climate Iluminated/Reprodução)
Com seu fim, o PQM foi seguido por um período mais frio no Atlântico Norte e em outros lugares, como parte da Pequena Idade do Gelo, arrastando para várias porções da Europa um clima extremamente úmido, caracterizado por invernos rigorosos, verões chuvosos e frios. Essa mudança, combinada com a ineficácia dos governos medievais em lidar com contratempos, gerenciamento de crises em meio a uma das maiores taxas populacionais até aquele momento, estoques vazios e falta de planejamento –, foi o início da Grande Fome de 1315.
Naquela época, o alimento básico que compunha a dieta medieval era o pão, mas a chuva constante inundou os campos, apodrecendo as colheitas e afogando o gado na pastagem, e mofou o pouco dos grãos guardados devido à falta de logística para preservá-los. Em um ano considerado de boa colheita, para cada grão semeado, colhia-se sete de volta; mas em 1315, foi apenas um grão para cada dois plantados — ou seja, era a tragédia anunciada.
(Fonte: The Irish Podcast/Reprodução)
Com a escassez das colheitas, os preços dos alimentos para refeições básicas, como era o pão, vegetais e aveia, dispararam na primavera de 1315. O sal, por exemplo, essencial para curar e conservar a carne, se tornou um produto raro porque era quase impossível extraí-lo por evaporação em um tempo ruim.
Em meio ao caos, o rei Eduardo II chegou a decretar que o preço dos alimentos fosse limitado, em uma tentativa de atenuar a crise, porém os comerciantes se recusaram a vender seus produtos a preços inferiores, gerando revoltas até que o ato despencasse no Parlamento de Lincoln no ano seguinte.
Portanto, não demorou muito para que a situação saísse completamente fora do controle, à medida que as regiões se afundavam em estado de calamidade. No norte da Inglaterra, os cidadãos partiram para saques, causando uma guerra com os comerciantes. Isso se espalhou entre os próprios, que precisavam ficar de olhos abertos para que os vizinhos não roubassem suas casas ou seus negócios.
(Fonte: Wikipedia/Reprodução)
Assim, as mortes por homicídio começaram, com as pessoas tendo que barricar suas casas para se protegerem dos invasores. Todo mundo temia sair às ruas em qualquer período do dia e não voltar mais, como na narrativa do Vilarejo, de Raphael Montes. Além de despertar o extinto mais primitivo e fazer das pessoas assassinas, a fome extrema as fez recorrer à alimentação de cães e cavalos.
Após 1 ano de calamidade, quando os corpos já se empilhavam dentro e fora das casas, o canibalismo se tornou uma prática de sobrevivência. Sem nada mais para roubar, as pessoas saíam para caçar umas às outras. Isso quando a loucura causada pela fome e miséria já não havia feito vítimas entre a própria família.
Acredita-se que foi nesse período que surgiu o conto de fadas João e Maria, do original Hansel e Gretel, porque os pais que não podiam mais alimentar seus filhos passaram a abandoná-los em florestas ou pelas ruas para que se virassem sozinhos. É provável que a motivação da Bruxa na história seja um recorte do que um cidadão comum se transformou após enlouquecer pela fome.
Os padrões climáticos se normalizaram apenas no verão de 1317, mas demorou 5 anos para reestabelecer os suprimentos. Ainda existe um extenso debate sobre quantas pessoas pereceram durante a Grande Fome de 1315, porém estima-se que 10% a 25% da população europeia ao longo de 3 anos excruciantes.