Artes/cultura
16/06/2020 às 14:00•4 min de leitura
Na medicina, a cirurgia é um dos procedimentos mais complexos e delicados tanto para o médico quanto para o paciente; ambos têm que lidar com as margens de erros, o imprevisível e a tensão de estar sob o bisturi ou empunhando um. Uma equipe muito capacitada enche a sala de operação, para que o processo seja o mais assertivo e seguro possível.
E quando falamos de situações extremas em que a sobrevivência depende de uma cirurgia emergencial, mas não há tempo de chegar a um hospital? A morte é a resposta mais óbvia, porém alguns não se conformam com ela.
Em 2000, em um remoto vilarejo mexicano onde o acesso a assistência médica levava 8 horas de carro, uma mulher de 40 anos de idade teve que fazer a própria cesariana depois de horas de trabalho de parto improdutivo. Ela usou uma faca de cozinha para abrir o seu abdômen, valendo-se de suas habilidades de anos realizando o abate de animais. O procedimento levou 1 hora; ela foi costurada por uma enfermeira local e depois levada para o hospital, do qual recebeu alta após 10 dias de recuperação.
Esse foi um caso clássico de autocirurgia, um raro tipo de ação conduzida por momentos igualmente incomuns. O russo Leonid Rogozov foi além, sendo o primeiro a fazer isso sob circunstâncias extremas e em um ambiente medicamente desamparado.
Em 1960, em meio à Guerra Fria, a União Soviética organizou a sexta expedição de cientistas à Antártida, para que construíssem uma base de pesquisa em Schirmacher Oasis, região oriental do continente. Entre os 12 profissionais estava o jovem Rogozov, com apenas 27 anos de idade, o único médico do time. Especializado em medicina familiar e cuidados da comunidade, ele era considerado promissor e brilhante para a idade, por isso foi um dos recrutados para a missão que duraria cerca de 1 ano.
Sob o frio cruel, a viagem até a base soviética Novolazarevskaya durou quase 6 dias. Em meados de fevereiro de 1961, após um longo trabalho, o espaço ficou pronto, e o grupo de profissionais permaneceu lá até que no início da primavera um navio ou avião pudesse resgatá-los daquele mundo invernal.
O tempo frio causou um cansaço repentino em Rogozov, com fraqueza, ondas de enjoo e febre. Poderia ser um resfriado ou algo parecido, mas a forte dor no lado direito do abdômen deixou claro para o médico que eram sintomas de uma apendicite aguda. Na manhã de 29 de abril de 1961, ele acordou com uma febre muito alta, suando frio e sofrendo com as dores na região extremamente inchada. Ele precisava de uma cirurgia de emergência, mas era impossível, pois não tinha como ir até um hospital.
Com todos muito preocupados com o seu estado crítico, Rogozov tomou a decisão de que faria uma autocirurgia na noite seguinte. Não foi uma escolha fácil, mas ele sabia que cedo ou tarde o seu apêndice poderia estourar e levá-lo à morte. No mundo civilizado, era só uma operação rotineira com a qual ele já estava acostumado, porém as circunstâncias eram diferentes; ele estava em meio ao inverno polar e sem estrutura alguma.
O cirurgião teria que abrir sozinho o próprio abdômen para retirar a porção inflamada. E ele sequer sabia se seria humanamente possível. De qualquer forma, ele morreria se não fizesse tanto quanto morreria se falhasse.
Os outros profissionais fizeram de tudo para melhorar a situação de Rogozov, mas os sintomas só pioravam. Eles tentaram buscar ajuda entrando em contato com equipes de pesquisadores de outras bases na Antártida, porém a crescente tempestade impediu a comunicação. No fim do dia, o destino de Rogozov já parecia estar selado.
Na noite de 30 de abril, com a ajuda de um engenheiro mecânico e um meteorologista que serviram como instrumentistas, o médico deu início à cirurgia. Os demais membros do time foram instruídos sobre o que fazer se ele perdesse a consciência, como injetar adrenalina e realizar ventilação artificial.
Para manter a cabeça o mais clara possível, ele teve que aplicar uma anestesia local, então a remoção do apêndice deveria ser feita sob a pura dor. "Eu estava com medo, mas, quando peguei a agulha com a novocaína e dei a primeira injeção, de alguma forma mudei para o modo operação e, a partir daquele momento, não notei mais nada", escreveu Rogozov para um jornal da época.
Com um espelho posicionado na altura da barriga e uma lâmpada pairando sobre o local, ele aplicou a anestesia e abriu uma incisão de 12 centímetros apenas para começar. Em sua mente, ele tinha o fantasma de Werner Forssmann e Evan O'Neill Kane, os primeiros a realizarem a própria cirurgia, porém em um ambiente controlado. Ali, ele não tinha nada, tampouco chances.
Guiando-se pelo toque, Rogozov moveu o intestino para chegar ao apêndice, porém, com a imagem invertida do espelho, ele cortou o intestino inferior, tendo que suturá-lo. Em 30 minutos de procedimento, ele desmaiou, então optou por fazer pausas a cada 5 minutos para descansar por 25 segundos. O cirurgião chegou ao apêndice inflamado e descobriu pela aparência que, se tivesse demorado mais 1 dia, ele teria fatalmente rompido.
Após 1 hora e 45 minutos, Rogozov terminou com maestria a autocirurgia em um ambiente impróprio e contra todas as possibilidades. Em 5 dias, a sua temperatura voltou ao normal e os pontos da incisão foram removidos. Ele se tornou mundialmente famoso pelo feito e até hoje os instrumentos que usou na operação estão expostos no Museu do Ártico e do Antártico, em São Petersburgo (Rússia).
O médico não só rendeu um relato histórico memorável como também foi fundamental para o estudo de alterações na visão clínica de uma cirurgia e na administração de anestesias.