Artes/cultura
03/08/2020 às 15:00•4 min de leitura
Em Winko v British Columbia (Forensic Psychiatric Institute) foi dito: "Em toda sociedade existem aqueles que cometem atos criminosos por causa de doenças mentais. A lei criminal deve encontrar uma maneira de lidar com essas pessoas de maneira justa, enquanto protege o público contra outros danos. A tarefa não é fácil".
O caso de Billy Milligan dividiu as pessoas, mas serviu como instrumento de educação. Boa parte da opinião pública estava ao lado das vítimas e, como a promotoria, não acreditava no que era alegado pela defesa. A mídia foi acusada de prejudicar a legitimidade das decisões e do processo ao tornar o réu uma celebridade por conta de sua condição psicológica e psiquiátrica extraordinária.
Novamente, a famosa linha tênue de discussão foi estabelecida: um transtorno mental justifica um crime?
William Stanley Milligan, filho de Dorothy Milligan e Johnny Morrison, nascido em 14 de fevereiro de 1955 em Miami (EUA), não cresceu em um ambiente familiar muito saudável. Ele viu o pai alcoólatra ter crises, acumular dívidas de jogo e cometer suicídio na garagem de casa por envenenamento em 1959.
Depois disso, Dorothy se mudou com Billy e mais três filhos para a sua cidade natal, Lancaster (Ohio), e passou por muitos relacionamentos com homens abusivos, que os machucaram até que finalmente ela se casou com o ex-marido novamente, Chalmer Milligan, em 1963 — o mesmo homem de quem já tinha se separado por conta de violência.
Aos 5 anos, todo esse processo traumático, desde as horríveis memórias do pai até ser violentado diariamente por Chalmer, Billy começou a dividir a sua mente em diferentes personalidades para conseguir lidar com a dor. As três primeiras foram Shawn, Christene e Garoto Sem Nome.
Shawn tinha 4 anos, era surdo e apenas zumbia. Ele refletia o desejo de Billy de se excluir dos barulhos do mundo, como o de Chalmer enquanto o estuprava e dos gritos da mãe ao ser espancada. Christene tinha 3 anos e era disléxica, mostrando a confusão e a reclusão do mundo que não entendia como Billy era. E o Garoto Sem Nome sentia que não pertencia a lugar algum, tampouco ao próprio corpo.
Essa grave bipolaridade acompanhou o crescimento de Billy, então outras personalidades ganharam vida a partir de memórias e emoções segregadas geradas pela incapacidade dele de integrar experiências e informações complexas em uma única identidade pessoal coesa.
Em meados de 1970, quando o jovem entrou na Universidade Estadual de Ohio (OSU), esse quadro clínico ainda não diagnosticado piorou de maneira drástica.
Em 1975, aos 22 anos, Billy foi preso na Instituição Correcional de Lebanon, em Ohio, por ter estuprado e assaltado à mão armada uma mulher. Contudo, foi colocado em liberdade condicional em 1977 e forçado a se registrar como agressor sexual.
Em 14 de outubro de 1977, o jovem apontou uma arma para uma estudante de Optometria da OSU, estuprou-a no estacionamento do campus, depois a obrigou a preencher um cheque e descontá-lo para ele. Isso aconteceu de novo em 22, 26 e 27 de outubro exatamente como na primeira vez.
As três vítimas identificaram Billy no banco de fotos de agressores sexuais, com as digitais encontradas no carro de uma delas. Em depoimento, uma das mulheres definiu o comportamento do homem como "estranho", além de afirmar que ele agia "como uma menina de 3 anos".
A polícia de Columbus e da OSU prenderam Billy em casa, em Reynoldsburg. No momento da prisão, ele se mostrou surpreso e chocado, porém não resistiu. Com todas as provas, o caso indicava um fim prático, mas não foi bem assim.
O Dr. Driscoll diagnosticou Billy com esquizofrenia aguda, porém a psicóloga Dorothy Turner, do Southwest Community Mental Health Center, definiu que ele sofria de Transtorno Dissociativo de Personalidade. O distúrbio acontece quando alguém tem uma "ruptura de identidade", com duas ou mais personalidades que assumem o controle enquanto a principal fica desligada da mente. O transtorno geralmente resulta de experiências traumáticas em que os indivíduos usam as personalidades alteradas para escapar de abusos emocional e físico.
Billy foi diagnosticado com 24 perfis vivendo dentro de sua mente, todos com nomes, idades, sotaques, interesses, índoles, sexualidades e deficiências diferentes. O seu relatório psiquiátrico acusava que um jovem iugoslavo chamado Ragen tomou a consciência de Billy e decidiu roubar as pessoas, porém, antes disso, Adalana, uma homossexual de 19 anos, assumiu o controle e estuprou as mulheres porque queria se sentir mais "viva".
Em nenhum momento a personalidade principal, o próprio Billy, lembrou-se do que aconteceu. O jovem tinha impulsos suicidas, como o pai, e dizia que sentia como se tivesse sido "roubado" quando "voltava" para o próprio corpo.
Terry Sherman, um dos promotores do caso, definiu a história como ridícula. Yavitch, outro promotor, discordou dele: "O padrão de fala de Billy era diferente, seus sotaques eram diferentes. Ele se sentou de diferentes maneiras na cadeira".
"Isso é besteira. A mídia está fazendo desse cara um herói popular", contrapôs um dos parentes de uma vítima durante o julgamento. O caso foi absorvido pela mídia de tal maneira que o mundo passou a se interessar mais pela psique do réu, anulando os crimes e traumas causados às vítimas, gerando uma revolta social.
Billy foi absolvido e se tornou a primeira pessoa da história do sistema judiciário dos Estados Unidos a ser inocentada por um crime alegando transtorno de personalidade. No entanto, durante 10 anos, ele foi submetido a um tratamento psiquiátrico diário e intensivo para que, a cada 90 dias, uma série de audiências pudesse discutir o estado de sua sanidade e a manutenção do veredicto.
Em 1988, Billy foi finalmente liberado de seu tratamento após ter completado o que os médicos chamavam de fusão de personalidade e assumido o controle de sua mente novamente. Ele viveu na Califórnia como proprietário de uma pequena empresa até morrer de câncer em 12 de dezembro de 2014.