Ciência
02/11/2022 às 08:00•5 min de leitura
Em 25 de maio de 2020, o mundo foi sufocado com George Floyd, um afro-americano de 45 anos assassinado por um policial branco que, por 8 minutos e 46 segundos, se manteve ajoelhado sobre o pescoço dele.
O crime, que aconteceu em Minneapolis, Estados Unidos, provocou um levante de indignação global, lançando luz para a violência policial motivada pelo racismo estrutural que devasta principalmente os bairros periféricos do país desde o início do século XVIII. A organização Mapping Police Violence, que monitora os tiroteios policiais, levantou que a polícia americana atirou e matou pelo menos 1.055 pessoas em 2021, das quais os negros configuram 27% das mortes, mostrando como o movimento Black Lives Matter, infelizmente, teve pouco efeito na coibição do problema.
(Fonte: History/Reprodução)
Ano passado, Christopher A. Wray, diretor do Federal Bureau of Investigation (FBI), afirmou que a supremacia branca dos EUA é um problema maior do que o jihadismo e enalteceu a necessidade de um projeto de lei para lidar com o aumento da violência da extrema direita.
Visto que ofensas, ataques de todos os tipos e violência racial aumentaram exponencialmente desde o crime envolvendo Floyd no país, foi renovada a questão de saber se o racismo pode ser tratado como uma doença mental.
(Fonte: Coursera/Reprodução)
Com a morte de Floyd e o movimento Black Lives Matter, foi resgatado uma entrevista de 1992 da educadora Jane Elliot, conhecida por ensinar seus alunos sobre o preconceito, no programa The Oprah Winfrey Show, sugerindo que o racismo seria fruto de uma doença mental.
“O racismo é uma doença mental. Se você julga outras pessoas pela cor de sua pele, pela quantidade de um produto químico em sua pele, você tem um problema mental. Você não está lidando bem com a realidade”, disse ela, sendo aplaudida efusivamente por membros da plateia do emblemático programa da televisão norte-americana.
De lá para cá, as pesquisas no Google por "racismo é uma doença mental?" atingiram um nível nunca visto nos últimos 10 anos, com o trecho da entrevista da educadora sendo postado incansavelmente nas redes sociais, especialmente no Twitter.
Apesar de ser um sentimento que muitas pessoas compartilham sobre aqueles que odeiam outros indivíduos apenas por sua etnia, a crença de que o cérebro dessa pessoa não está funcionando de maneira correta não é o pensamento ideal para se ter sobre a estrutura e as origens do racismo na sociedade.
O poderio médico é o primeiro a se opor a essa comparação e ressaltar o quão preocupante é disseminar esse tipo de ideia, sobretudo nos tempos virais da internet. Isso porque o racismo funciona, em linhas muito básicas, como uma escolha, enquanto os transtornos mentais, de depressão a esquizofrenia, não são.
Chamar o racismo de doença mental apenas deslegitima a história de como ele aconteceu no mundo, enquanto reforça o estigma ao redor das doenças mentais, aumentando a prática de usar a linguagem da saúde mental de maneira depreciativa.
(Fonte: PWHS/Reprodução)
Apesar de Elliot ter mencionado o racismo como doença mental em 1990, esse impulso para defini-lo como tal veio de profissionais de saúde mental, datando da década de 1960, quando um grupo proeminente de psiquiatras negros solicitou à Associação Psiquiátrica Americana (APA) que adicionasse "intolerância extrema" ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, mais conhecido como DSM.
A petição foi rejeitada porque a APA enxergou o racismo como algo "muito comum" para ser considerado uma doença. Além disso, para ser enquadrado como uma doença, era preciso que desviasse do pensamento ou comportamento típico e causasse uma perturbação e angústia na vida de um indivíduo. A APA alegou que o racismo era tão difundido que se tornava uma questão cultural, não uma psicopatologia.
No entanto, não era muito difícil entender o motivo de pessoas, como o psiquiatra negro Alvin Poussaint, não compreenderem como os brancos achavam comum o racismo.
“Era algo que estava sempre presente e parecia um estado de terror. Eu senti que era como um distúrbio mental, porque você não conseguia argumentar com as pessoas sobre isso”, concluiu ele, quando viajou à Jackson, no Mississippi, EUA, em 1965, para fornecer tratamento de saúde mental aos trabalhadores e dessegregar os hospitais.
De maneira geral, entender o motivo de pessoas terem pensamentos tão racistas ou mostrarem dificuldade em enxergar como esse preconceito não faz sentido, é necessário acompanhar a ideia de que o racismo existe em um espectro, que alcança desde crenças racistas extremas e crimes de ódio, até os preconceitos que todos os brancos precisam enfrentar. Delírios envolvendo raça também podem ser um sintoma de transtornos psicóticos, e sua colocação no DSM não está em debate nesse aspecto.
(Fonte: History/Reprodução)
Poussaint fazia uma distinção clara entre o racismo cotidiano e o extremo, este que ele achava que deveria ser classificado como um transtorno mental, porque significava que alguém havia sido tão consumido pelo ódio a ponto de querer matar. Para ele, isso estava além do normal.
“Algumas pessoas que se opõem ao fato de ser chamado de transtorno mental dizem: ‘Bem, é apenas um comportamento aprendido’. É um comportamento aprendido querer exterminar as pessoas por causa da cor da pele?”, argumentou ele.
Desse modo, enquadrando o racismo como uma doença mental empurraria o problema para os brancos, que deveriam reconhecer que há algo de errado na maneira como eles pensam e sentem, aliviando os negros da sensação de que, se pudessem agir de maneira diferente, os brancos deixariam de ser racistas contra eles.
(Fonte: The New Yorker/Reprodução)
Professor de psiquiatria da Universidade Emory e coautor do livro Are Racists Crazy?, Sander Gilman diz que o desejo de considerar o racismo como uma doença mental vem da vontade de colocá-lo fora do escopo do comportamento humano típico, quando, na verdade, ele não está.
Seria um belo argumento, segundo ele, porque significaria que pessoas normais nunca deveriam matar, por exemplo, pessoas em Auschwitz, quando, na realidade, elas faziam isso de maneira regular. Eles haviam desumanizado tanto as vítimas que não as viam mais como seres humanos. Isso não era doença mental, apenas o mau em sua pura forma, porque as pessoas podiam fazer escolhas.
Sander ressalta que, só quando começamos a falar sobre atividade "normal", isso então inclui atos ruins. Em outras palavras, o 'normal' não é sinônimo de "bom" ou "justo", ainda que desejamos que seja assim.
(Fonte: Ferris State University/Reprodução)
Oriundo de uma verdadeira construção social, o próprio termo “raça” foi cunhado em um espectro de preconceito para descrever e categorizar pessoas em vários grupos sociais com base em características como cor da pele, características físicas e herediência genética.
O conceito de raça como entendemos hoje, evoluiu com a formação dos Estados Unidos e sempre esteve ligado à evolução dos termos "branco" e "escravo", usados pelos europeus colonizadores nos idos anos de 1500. Eles foram os responsáveis por trazerem essas palavras para a América do Norte e, ainda que naquela época não carregassem o significado que têm hoje, adquiriram ideais diferentes através das necessidades da sociedade americana em desenvolvimento.
Filósofos e naturalistas do Iluminismo Europeu, baseado nas ideias do raciocínio secular, estudo científico, e racionalidade em oposição às compreensões religiosas baseadas na fé do mundo –, categorizaram o mundo de novo com crenças que evoluíram a partir do final do século XVII e floresceram ao longo do final do século XVIII, argumentando que haviam leis naturais que governavam o mundo e os seres humanos.
(Fonte: Centro de Memória Sindical/Reprodução)
Os séculos apresentaram uma falsa noção de que os brancos eram mais inteligentes, capazes e humanos do que as pessoas não brancas, e isso passou a se tornar cada vez mais aceito, inclusive justificou a instituição da escravidão dos africanos.
Foi só em meados da década de 1660, nas colônias americanas, que o termo "branco" foi colocado em oposição à "raça" e "escravo", categorizando os colonos europeus como pessoas hierarquicamente acima daqueles que não se pareciam com eles.
As invenções sociais conseguiram unir o branco atribuído apenas ao anglo-saxão e às mulheres da elite que não tomavam sol, a um status de superioridade e poder; desapropriando e marginalizando os povos nativos e escravizando de maneira permanente ao longo de várias gerações a maioria dos povos descendentes de africanos.
Assim, a cultura americana se desenvolveu como sociedade e economia tendo como base as ideias de raça e racismo.
(Fonte: Howard Law Library/Reprodução)
Após 6 de dezembro de 1865, depois que a 13ª Emenda da Constituição Americana aboliu a escravidão nos EUA, o racismo como o conhecemos, com base no ódio, apenas cresceu de maneira desenfreada, se instalando em todos os pilares da sociedade. Apesar de a lei ter coibido a prática de cultivar pessoas negras como escravos, a segregação racial que predominou na maior parte do sul americano através das Leis de Jim Crow, marginalizavam os negros a fim de mantê-los no submundo da sociedade como se fossem selvagens.
(Fonte: Post New Groups/Reprodução)
Apesar dos progressos, a segregação permaneceu no país até o Movimento dos Direitos Civis acontecer, atingindo seu ápice na década de 1960.
“O racismo é um sistema de vantagem baseado na raça. É uma hierarquia. É uma pandemia. O racismo está tão profundamente enraizado nas mentes dos EUA e na sociedade que é praticamente impossível escapar dele”, disse Steven O. Roberts, diretor do Laboratório de Conceitos Sociais, parte do departamento de psicologia, na Escola de Humanidades e Ciências da Universidade de Stanford.
Portanto, no final das contas, a pergunta que fica é: declarar o racismo como uma doença tornaria o mundo um local menos racista ou só faria dele pior?